Carta de Conjuntura da Comunicação Pública

ABCPública faz análise sobre a comunicação pública em 2019

Número 01|Dezembro de 2019

O governo federal adotou, ao longo do ano, iniciativas que causam restrições ao fluxo de informação transparente, educativo e de diálogo entre as instituições a ele vinculadas e a sociedade brasileira. A polêmica, o debate não-produtivo em direção a soluções participativas, a restrição as informações e seus fluxos limitaram o acesso da sociedade às decisões e inviabilizaram a participação de uma maneira plural. A extinção de conselhos e colegiados com participação social sugere o desinteresse por conhecer manifestações e o envolvimento da sociedade em temas de interesse comum. A intervenção em campanhas publicitárias, como no episódio do Banco do Brasil, indica afastamento das premissas constitucionais: o Estado Democrático será instituído tendo “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (preâmbulo da Constituição Federal).

Boa parte das ações, em particular às relacionadas à imprensa, parecem ser inspiradas em governos de diferentes países também criticados por ferirem padrões de liberdade de expressão e criarem restrições ao acesso à informação. Mais gravemente, episódios de quebra de civilidade se tornaram frequentes e parecem servir, intencionalmente ou não, de exemplo para governos estaduais e municipais seguirem na mesma direção em busca de adesão de segmentos específicos da sociedade em detrimento ao interesse geral. O resultado é o aumento do poder do Estado na sua relação com o cidadão comum, já naturalmente fraco em sua capacidade de interlocução e a inibição da participação no debate pelo que é de todos.

A hostilidade do Executivo em relação à imprensa profissional e aos jornalistas, de modo geral, guarda semelhança com o posicionamento crítico e acusatório de governos e grupos políticos extremistas – de esquerda e direita – ao redor do mundo. Jornalistas críticos e investigativos são vistos como bloco de pensamento contrário e não merecedores de atenção. Manifestações de agentes públicos – com destaque para veiculação nas redes sociais – buscaram desqualificar o jornalismo e atacar os profissionais, muitas vezes de forma agressiva.

Parece haver um claro retrocesso no interesse em compreender e dialogar com a sociedade para estabelecer um governo que busque atender ao interesse de todos.

A comunicação pública está associada aos preceitos de gestão e governança do Estado, definidos pelo artigo 37 da Constituição: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Cabe aos diferentes governos obediência às leis, atuação impessoal, alicerçada no interesse coletivo, padrões éticos elevados e decisões pautadas pela busca de resultados com economicidade. Estes valores são interligados ao princípio da publicidade, o que significa dar conhecimento amplo à sociedade do que ocorre no âmbito do Executivo, Judiciário e Legislativo.

A gestão da comunicação pública não consegue ser eficaz se não tem base em fatos para estabelecer um diálogo em base comum. A experiência recente dos cidadãos tem sido lidar com autoridades que compartilham informações falsas, distorcidas, descontextualizadas e sem fundamento em fatos e que, portanto, não estão à altura das responsabilidades institucionais conferidas pelas funções públicas que desempenham. Tal comportamento configura um modelo que foge de preceitos constitucionais e não busca o bem comum. Ao contrário, o aparato das redes sociais quando utilizados indevidamente por agentes públicos – e são muitos os exemplos – tem se confundido com interesses políticos particulares. Tal uso tem sido disfuncional como plataforma de comunicação do Estado com a sociedade.

Obstruir os canais de interlocução, adotar práticas que dificultam o diálogo, insuflar ofensas e estimular o ódio: nada destas atitudes dizem respeito à liturgia do cargo e aos preceitos da comunicação republicana. Cabe ressaltar a existência de diversos discursos, postagens, entrevistas, nos quais foi desperdiçada oportunidade para enfatizar os compromissos democráticos esperados em uma sociedade avançada e o princípio de uma República que exige a igualdade para todos.

Quanto à mídia pública federal, veículos da comunicação assumiram caráter oficial ou governista, deixando de abordar os temas relevantes ao país em uma perspectiva plural, com a oferta de diferentes pontos de vista.

Por fim o Governo Federal anunciou a inclusão da Empresa Brasil de Comunicação no rol de instituições a serem privatizadas. Tal medida está na contramão da Constituição Federal brasileira e de governos em todo o mundo que contam com sistemas públicos de comunicação relevantes, com diversidade de opinião, agenda de interesse nacional e que são considerados essenciais em países democráticos.

No detalhamento da análise sobre a conjuntura da comunicação pública, sete pontos centrais resumem o padrão de comportamento do governo em relação ao tema Comunicação Pública:

  1. HOSTILIDADE COMO PADRÃO DE RELACIONAMENTO A IMPRENSA

De jornalistas de órgãos tradicionais, como Estado de S. Paulo, (áudio forjado contra Constança Rezende, em 10 de maio) ao The Intercept (Glenn Greenwald ameaçado de prisão e expulsão do país, em 29 de julho) o discurso de confronto contra profissionais sugere estratégia de intimidação e de mobilização de grupos digitais – nas redes sociais – para acuar o jornalismo profissional. Este tratamento teve início já na cerimônia de posse presidencial, quando os jornalistas foram privados de itens essenciais que comprometeram seriamente as condições de trabalho da imprensa, como relato feito em 1º. de janeiro, pelas jornalistas Mônica Bergamo (“Um dia de cão” – Folha) e Míriam Leitão (“Com o pretexto da segurança, o trabalho da imprensa está sendo restringido na posse” – Globo). No âmbito das empresas jornalísticas, em agosto, o Executivo editou Medida Provisória cancelando a obrigatoriedade da publicação de balanços financeiros em jornais. Se a medida poderia ter alguma racionalidade, esta foi dissipada pela sugestão do governo de que se tratava de certo tipo de retaliação aos veículos.

Mais tarde, em outubro, após matéria no Jornal Nacional, sobre as investigações em torno dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes o Presidente da República ameaçou o veículo questionando a renovação a concessão pública da TV Globo em 2022. Também em outubro, em entrevista para a TV Bandeirantes (31/10), o chefe do Executivo disse que o Governo, por não confiar no jornal, cancelou assinaturas da Folha de SP, um dos mais importantes do País, nos órgãos federais e novamente mandou recados para anunciantes (“prestem atenção”). O Executivo Federal chegou à inédita postura, não ocorrida mesmo no regime militar, de sugerir aos anunciantes o boicote a determinadas emissoras e jornais. Também a Folha de S.Paulo foi excluída de pregão eletrônico (edital de 28 de novembro) para contratação de serviços de fornecimento de assinatura para acesso on-line a jornais e revistas nacionais e internacionais, decisão revista diante da judicialização da questão patrocinada pela Associação Brasileira de Imprensa e da representação do subprocurador-geral junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado, para que o jornal não fosse excluído da licitação uma vez que a intenção ofendia os “princípios constitucionais da impessoalidade, isonomia, motivação e moralidade”.

O exemplo do Governo Federal parece ter inspirado o Prefeito do Rio de Janeiro. No início de dezembro, em coletiva para a imprensa carioca, o Prefeito impediu o acesso aos jornalistas do jornal O Globo. Motivo sugerido: retaliação contra reportagem sobre investigação do Ministério Público, junto à Prefeitura, apontando indícios de irregularidades.

Além de provocações e críticas nominais a jornalistas, fora do tom cordial, civilizatório e institucional que deve permear as relações Estado e Imprensa, em novembro, no âmbito do Programa Verde e Amarelo, o Governo Federal revogou, por Medida Provisória, artigos do Decreto que regulamenta a profissão de jornalista. O registro profissional deixou de ser obrigatório, o que, na prática, permite a atuação de qualquer pessoa, mesmo sem formação adequada, a exercer a atividade. A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) apontou inconstitucionalidade da medida e alertou que “é mais um passo rumo à precarização do exercício da profissão de jornalista, uma atividade de natureza social ligada à concretização do direito humano à comunicação”. A conclusão da FENAJ é que “na prática, sem qualquer tipo de registro de categoria, o Estado brasileiro passa a permitir, de maneira irresponsável, o exercício da profissão por pessoas não-habilitadas, prejudicando toda a sociedade”.

Por fim, talvez resumindo, registre-se o monitoramento mensal da FENAJ dos discursos, entrevistas, lives e uso do twitter do Presidente da República. Em novembro, o consolidado do ano registrava 111 ataques à Imprensa e 100 ocorrências de “descredibilização” no jornalismo. De acordo com o levantamento da entidade, “em onze meses como chefe de Estado, Bolsonaro faz um ataque à imprensa a cada três dias, em média”.  Quanto às estatísticas da desinformação oficial, uma agência de fact-checking – Aos Fatos –  informa: “em 337 dias como presidente, Bolsonaro deu 522 declarações falsas ou distorcidas” (levantamento divulgado em 04 de dezembro).

2. CRISE E ESVAZIAMENTO DAS REDES DE RADIODIFUSÃO PÚBLICAS

O atual Governo Federal implementou alterações na programação dos veículos de comunicação pública da Empresa Brasil de Comunicação (TV Brasil, Rádios Nacional e MEC e Agência Brasil) que diminuíram a diversidade de opiniões e priorizaram a transmissão e cobertura de atos oficiais. Com isso os objetivos da comunicação pública – prevista na Constituição Federal e na Lei de criação da EBC – estão sendo negligenciados.

A junção da programação da TV NBR (TV estatal) com a TV Brasil (TV pública) significou, na prática, a transformação de dois canais distintos em um único, governamental. A programação da TV Brasil, originalmente pública, serviu para a transmissão ao vivo de dezenas de eventos com a presença do Presidente da República e de ministros de Estado. A mudança atingiu especialmente a programação infantil da emissora, reconhecida pela qualidade e a única disponível em TV aberta, ou seja, financeiramente acessível à maior parte da população.

A TV Brasil, por exemplo, passou a exibir boletins informativos de hora em hora em que, majoritariamente, as notícias envolvem apenas fontes do Governo Federal, sem espaço para o contraditório, a multiplicidade de visões e de atores da rica sociedade brasileira.

3. AMEAÇAS À TRANSPARÊNCIA

Apesar de recentes, avanços institucionais como a Lei da Transparência (informações sobre a gestão fiscal) e a Lei de Acesso à Informação (LAI) foram ameaçadas. O Executivo elaborou projeto que resultava claro retrocesso, que somente não prosperou por reação do Parlamento. Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal (STF), em novembro, declarou inconstitucional dispositivo defendido pelo novo governo que assegurava o sigilo sobre gastos da Presidência da República, entre eles os relativos ao cartão corporativo (decreto-lei nº 200, de 1967).

As transformações tecnológicas em curso, capazes de intensificar a participação social, transparência e a prestação de contas, poderiam ser reforçadas na perspectiva de construção de Governo Aberto, mas os poucos passos do Executivo Federal têm sido tímidos nesta direção. Com a extinção do Ministério do Planejamento, então responsável pelo monitoramento da abertura de dados dos órgãos governamentais, a responsabilidade passou para a Controladoria-Geral da União (CGU). Segundo a CGU – revista Época, 11 de agosto de 2019 – 141 órgãos dispunham de Planos de Dados Abertos, porém, apenas 52 deles estavam em dia com as bases programadas em seus cronogramas. De acordo com levantamento da revista, o Comitê Gestor da Infraestrutura Nacional de Dados Abertos praticamente não se reuniu.

Aspecto alarmante para a credibilidade e idoneidade das informações públicas, foram as investidas de setores do governo contra o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)  e o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O primeiro, teve questionado seu histórico método de apuração do desemprego ao entregar resultados que não correspondiam ao esperado pelo governo. O segundo, por apresentar dados considerados inconvenientes para a narrativa oficial a respeito do desmatamento na Amazônia. O grave, em ambos os casos, é a tentativa de cassar a legitimidade e a idoneidade dos dados públicos produzidos pelo serviço público, com consequências possíveis na credibilidade internacional e na dificuldade de compreensão do quadro real do País. Confiabilidade e independência na produção de dados públicos são premissas para a transparência e, sobretudo, para a formulação de políticas públicas adequadas e com impacto positivo na sociedade. Outros fatos, como o corte de cerca de 20% das perguntas do Censo 2020, são exemplos de como o descuido com a informação pode ser considerada uma orientação política, que acaba por comprometer as decisões governamentais e do conjunto da sociedade.

5. INVESTIMENTOS EM PUBLICIDADE POR CRITÉRIOS NÃO TRANSPARENTES

Diligência em andamento, conduzida pelo Tribunal de Contas da União (TCU – processo 008.196/2019-2) questiona os critérios da Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretária-Geral da Presidência da República ao alocar recursos públicos para custear campanhas publicitárias. De acordo com a auditoria, constatou-se que “não parece aceitável, como no caso em tela, que campanhas multimilionárias sejam aprovadas sem que constem registros mínimos dos apontamentos da fiscalização em relação aos modelos apresentados, solicitações de alterações, entre outros”. Ao solicitar justificativas e esclarecimentos, a representação pontua “possível aumento desarrazoado de ações publicitárias veiculadas em determinada emissora de TV aberta”. Em resumo, trata-se de direcionamento de verbas publicitárias a emissoras, sem coerência técnica, que é o share de mercado, a partir de aferições como a do Ibope. Pela análise do TCU, SBT e Record, superaram a Rede Globo, a líder de audiência. Ou seja, o governo está anunciando mais em quem tem menos audiência e investindo em veículos que possam dar retorno não apenas em alcance da informação pública, mas provavelmente na busca de apoio político.

Vale ressaltar que a metodologia chamada “mídia técnica” é inconclusa e parcial. O princípio da publicidade deve hoje ser entendido mais no sentido da transparência, ou seja, tudo o que é resultado do exercício do poder de Estado deve ser deixado aos olhos do público, para que se saiba o que se faz e para que haja escrutínio público sobre erros e acertos. Daí a necessidade de não apenas respeitar o share de audiência como a de garantir a pluralidade de veículos e de mídias, tendo em vista que há mensagens específicas e para públicos específicos, conforme cada política pública.

Destaque-se, ainda, as licitações de publicidade no âmbito do Legislativo, em diversos estados. Em dezembro, por exemplo, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo anunciou a intenção de contratação de mídia para anúncios institucionais ao custo estimado de R$ 30 milhões. Trata-se de modalidade que precisa de regramento. Já existem hoje sistemas de comunicação instalados na esfera do Legislativo, com canais segmentados para a difusão do trabalho realizado nas assembleias. O recurso a publicidade em veículos privados é complementar e requer comprovação da real necessidade.

6. RUPTURA COM MECANISMOS INSTITUCIONAIS QUE CONTRIBUEM E DÃO SUPORTE PARA A PROFISSIONALIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA

A conjuntura recente foi marcada pela rejeição aos serviços profissionais de agências de comunicação, com a não renovação de contratos de serviços técnicos que contribuem para boas práticas de comunicação (análise de mídias, mídia training, monitoramento web, entre outros instrumentos). No final de 2018, o presidente Jair Bolsonaro deixou claro que o Governo trabalhava em uma revisão dos contratos de comunicação. No início de janeiro, o ministro da Secretaria de Governo, General Santos Cruz, anunciou o fim do contrato de R$ 30 milhões/ano com assessoria de imprensa internacional.

A contração de serviços de apoio à comunicação – por meio de licitações e procedimentos públicos – que já davam suporte a diversos órgãos da administração pública, inclusive empresas de economia mista, foi praticamente paralisada. Licitações suspensas e desinteresse da administração pública para tais serviços, caracterizaram o período. Em que pese a necessidade de aperfeiçoamentos – seja na valorização dos profissionais do serviço público, nos processos licitatórios, no escopo dos serviços prestados ou no uso de cargos comissionados cedidos às agências – a profissionalização da comunicação e o aporte, com agilidade, de insumos e instrumentos do mercado, propiciam à gestão pública mecanismos para ajudar a estabelecer amplo e eficiente diálogo com a sociedade. O afastamento do Governo Federal destes prestadores de serviços, em que pesem restrições orçamentárias, parece sugerir que as informações do Estado devem ser geridas no espírito de militância e não por um padrão técnico, democrático, impessoal e republicano.

7. INSUFICIÊNCIA NORMATIVA NO USO DAS MÍDIAS SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO PÚBLICA

Em relação às mídias sociais, o terreno normativo apresenta ainda lacunas do ponto de vista jurídico-legal. No momento, encontra-se no STF questionamento sobre se uma autoridade pública pode bloquear usuários.

A conta de um dirigente público deixa de ter natureza exclusivamente pessoal quando utilizada para divulgar atos do governo. Em julho de 2019, em questionamento similar, um tribunal federal americano considerou inconstitucional a prática de Donald Trump de bloquear seus críticos no Twitter. “Ao resolver este recurso, recordamos aos litigantes e ao público que se algo a Primeira Emenda significa é que a melhor resposta ao discurso desfavorecido em assuntos de interesse público é mais diálogo, não menos”, afirmou o juiz norte-americano Barrington Parker.

O tema merece muita atenção. A ausência de um entendimento sobre o tema do uso das redes sociais pelos governantes – face à relativa novidade do fenômeno – não impede que tais posturas sejam examinadas sob o crivo do que seria desejável em termos de comunicação imparcial e republicana com a sociedade. A ABCPública entende que uma autoridade pública, mesmo em suas contas pessoais, usada muitas vezes para tratar de assuntos governamentais, não pode excluir as pessoas de um diálogo por expressarem opiniões contrárias, ou com as quais a autoridade ou o funcionário não estejam de acordo. O esforço do governante deve ser no sentido de abraçar o cidadão em busca de compreendê-lo, estimular a o entendimento, as simetrias e participação e não de afastar aqueles com quem não simpatiza.

Brasília, 12 de dezembro de 2019.

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