Nei Bonfim*
É estonteante que Chatô, o rei do Brasil, venha à luz no escurinho do cinema exatamente nesta hora em que o Brasil se retorce em dores causadas, sim, pelos metais pesados de nossas várias lamas, mas também pelo fato de a Justiça e a Polícia Federal terem virado represas com colossais vazamentos diários nas redações. Estas, coerentes com o estouro dos rejeitos, os fornecem já como sentenças definitivas. Esse modus operandi curiosamente vibra na mesma frequência do filme.
Produzido, dirigido, distribuído e com atuação do próprio Guilherme Fontes ao longo de um vendaval que durou 20 anos, Chatô é uma ópera cinematográfica. Retrata, como se sabe, o magnata das comunicações biografado por Fernando Morais que redesenhou o Brasil via empreendedorismo e chantagem. É exuberante. Bem-feito. Imperdível, mesmo que essa condição de mais longa gestação da história de nosso cinema craquele a narrativa em um ou outro trecho. Mas o que interessa na discussão à luz do perfil deste Conexão Pública é como a película se costura ao momento.
Antes de mais nada: depois de tudo o que Chatô enfrentou mas também arrastou no seu caminho, com problemas na prestação de contas, gastos além da captação e acusações de megalomania e de desvios, é muito bom que tenha enfim saído o ótimo filme que saiu.
Sua qualidade, entretanto, não pode autorizá-lo a subir além do degrau da redenção. Comecemos pelo começo. Como mostrou Marcelo Bortoloti numa Época de abril deste ano, o filme teve início em 1995 com R$ 8,5 milhões captados (dos R$ 12 milhões aprovados por dois mecanismos de incentivo). E chegou a 2014 com o TCU cobrando R$ 82 milhões.
No meio do caminho, Fontes conseguiu interessar Coppola. Este destacou o roteirista Matthew Robbins, responsável pelo recorte onírico do roteiro. Mas Coppola decepcionou ao recuar dos US$ 5 milhões esperados para míseros US$ 50 mil. Parte dos 5 mil figurinos foi destruída em incêndio. A mãe do diretor perdeu o apartamento por causa da sociedade com ele. E por aí foi, com tantas guinadas que o autor Fernando Morais, generoso o tempo todo com o imbroglio, falou em 2014 que “a obstinação dele dá um livro”.
Todos esses percalços que iam erguendo a grotesca narrativa extrafilme surgiam como um assombroso espelho da própria trama. O paraibano Assis Chateaubriand foi um magnata que no seu auge (1930/1960) controlava 26 jornais, 12 TVs, 14 rádios, 4 revistas, incluindo a até hoje imbatível O Cruzeiro e a primeira televisão do país, a Tupi. Além de ter sido o pé-de-cabra no erguimento do mais importante museu de arte da América Latina, o MASP, ao lado do antológico Pietro Maria Bardi.
Talvez por causa dos atropelos, o filme omite outra gigantesca investida integradora do empresário, a criação e disseminação Brasil afora dos aeroclubes, com os arquetípicos aeroplanos Paulistinhas. Quem sabe isso apareça no documentário prometido.
Seu roteiro não-linear é obra de Robbins, depois finalizado por João Emanuel Carneiro. Põe o magnata (Marco Ricca, excelente) num leito de hospital a delirar que sua vida toda está sendo passada em julgamento num programa de auditório estilo Chacrinha (o próprio Guilherme Fontes). Para isso, sobem ao palco Getúlio Vargas (Paulo Betti, desencaixado), Vivi Sampaio (Andréa Beltrão, ótima), disputada por Chatô e pelo ditador, e Rosenberg, o braço direito e sparring (síntese de Samuel Wainer e Lacerda, adversários do chefão).
Marco Ricca interpreta Assis Chateaubriand
A narrativa metafórica inclui desde uma sequência inicial de canibalismo em que Chatô reivindica devorar os portugueses da colonização até uma viagem dele, que realmente aconteceu em meio à revolução de 1930, para pactuar com Vargas no Sul. Alternam-se o apoio e a chantagem tosca ao ditador. Tudo determinado pelos interesses do empresário, incluindo a disputa por Vivi (aliás, a cena da visita da Morte, representada por Vivi, parece referência ao magistral All That Jazz, de Bob Fosse).
Isso é narrado com o apoio de uma riqueza de produção inusual: muitos figurinos de época vindos dos EUA, carros, muitas externas, variedade de ambientes (só de redações de jornais são três sets), uma procissão de minuciosos objetos de cena etc. Essa qualidade pode ser medida inclusive pelo cuidado com os diálogos (como se sabe, uma vulnerabilidade do cinema nacional e que nos EUA tem profissionais exclusivos). Por exemplo, Vivi, ao ser questionada no auditório sobre se manteve relacionamento com o chefão, responde que “de certa maneira, não”; já à pergunta de se manteve relações sexuais com ele, se sai com um “de certa maneira, sim”. Este apuro hoje enche os olhos do espectador, mas custou, e muito. Foi um dos ralos do dinheiro.
Uma contribuição peculiar do filme é uma frase de Chatô tão rasa quanto complexa. É quando o escudeiro Rosenberg exige seu direito a expressar sua opinião no jornal do patrão. Chatô rebate com um “Quer ter opinião? Crie seu próprio jornal”. Quem já ralou em redação certamente ou já ironizou, ou já presenciou colega brincando com isso ‒numa manifestação enviesada de impotência.
É certeza que, a despeito da existência de ombudsman etc., a cúpula dos atuais grupos de comunicação ainda sente urticárias diante de uma postulação dessas. Não pelo conteúdo; todos afinal sabem que é assim que funciona um grupo de mídia. Mas com o fato mesmo de alguém expressar essa verdade. Porque todo grande grupo de comunicação quer parecer imparcial, moderno, apartidário, plural.
E aqui chegamos à questão central deste texto. Por que a qualidade do filme não pode autorizá-lo a subir além do degrau da redenção? Porque, com isso, as irresponsabilidades de sua gestão, que foram facilitadas pelas lacunas iniciais dos mecanismos de apoio (Rouanet e Lei do Audiovisual), se evaporariam num sumiço automático. Problemas de um empreendimento que, sustentado pelo dinheiro público, teve sua prestação de contas questionada e só entregou um dos produtos prometidos ‒e isso, 20 anos depois. Vamos combinar que um delete automático de erros desse calibre num momento convulsionado como este seria péssimo para o país.
Seria como celebrar generosamente o viço do pepino que nasceu torto ‒até aí, tudo bem‒, mas, não contente, amplificar de tal maneira essa comemoração que esta extravazaria do pepino ao ponto de, insanamente, dourar o entortamento em si. E, por incrível que pareça, parte dessa distorção contaria com a ajuda da opção estética do filme. Não que um filme de roteiro mais linear não pudesse também embutir esse risco; não se enxergue aqui uma defesa tardia do chamado Realismo Socialista. Afinal, o Tropicalismo, o Surrealismo e tantas outras correntes artísticas desse amplíssimo campo que escapa à linearidade são sem dúvida muito interessantes. O que não significa que sejam à prova de tudo.
Acontece que não podemos deixar de ver que a carnavalização tropicalista como a desse roteiro executa com muito mais desenvoltura que outras correntes uma liquidificação das várias dimensões da obra. A ponto de opções tipicamente suas como falas gongóricas, luzes anárquicas, fluidez de uma câmera manual e edição feérica moerem e diluírem aquele ingrediente que justamente exige espaço próprio: a reflexão ética.
No caso de Chatô, basta voltar friamente ao início do projeto para perceber o que aconteceu: tínhamos um jovem global nos anos 90 que seduzia um país viciado em novelas. Empreendedor, realizador, corajoso; até aí, tudo bem. Mas que não havia ainda dirigido um único longa. Mesmo assim, o Estado o agracia com um vultoso recurso ‒como se ainda valessem as regras docondottiere Chatô. Essa questão do incentivo fiscal para a Cultura já é delicada o bastante. Deveria apoiar mais o criador que aposta em linhas de arte ainda não-aceitas. O ministro Juca Ferreira já na sua primeira gestão investiu contra esse e outros excessos mercadológicos da Lei Rouanet.
Deu no que deu, mas, enfim, habemus Chatô. Veja o filme, aguarde o documentário. Só não apaguemos as lições. Elas normalmente ficam atrás das câmeras.
* Nei Bomfim é diretor de Comunicação Corporativa. Trabalhou na Usina Belo Monte, no Xingu, e nos ministérios da Cultura e das Mulheres. Foi sócio-fundador da agência Dança da Chuva (Prêmio Aberje Brasil). Na imprensa, em SP, editou e escreveu sobre cinema, publicidade e marketing institucional.