No mês do Dia Internacional dos Direitos Humanos, fazemos um balanço da atuação do CNDH na pauta da comunicação
Na véspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, comemorado em 10 de dezembro, tomou posse, em Brasília, uma nova gestão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).
Ao longo de dois anos, o conselho buscou abraçar uma agenda diversa. Os impactos da construção de Belo Monte e de outras grandes obras e projetos; o extermínio da juventude negra e dos povos indígenas; os assassinatos de defensores de direitos humanos; a negação de direitos da população em situação de rua e das pessoas com deficiência; as violações no âmbito do sistema socioeducativo e o caos no sistema prisional foram algumas delas.
Nesse contexto, o Intervozes, organização eleita para compor o fórum, e outros diversos grupos, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Andi – Comunicação e Direitos, o Instituto Alana e a Artigo 19, buscaram contribuir também para a ampliação do reconhecimento da comunicação como um direito humano fundamental e, assim, da inserção de questões relacionadas à comunicação no cotidiano do Conselho.
Em um país que reconhece a comunicação como direito expressamente em uma norma, o Estatuto da Juventude, e possui pouquíssimos espaços institucionais para o debate aberto e participativo das políticas de comunicação – até hoje não possui um Conselho de Comunicação Social deliberativo, por exemplo – a criação da Comissão sobre Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão pode ser apontada como uma conquista dessa primeira gestão.
Isso porque a comissão tem o objetivo, reconhecido em normativas, de receber, analisar e monitorar denúncias de violações do direito à comunicação e dos direitos humanos na mídia, propor mecanismos de regulação dos meios de comunicação, opinar sobre políticas públicas do setor e desenvolver ações de promoção do direito à comunicação e à liberdade de expressão.
Por meio dela, especialmente, o CNDH buscou dar seguimento à deliberação de Grupo de Trabalho do CDDPH que havia aprovado a criação de um Observatório Sobre a Violência Contra Comunicadores.
Como soubemos já no apagar das luzes do governo Dilma, o Observatório, que chegou a ser objeto de portaria interministerial anunciada, porém nunca lançada, teve suas atribuições questionadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), que fez propostas sobre uma minuta que chegou até ela, mas não à sociedade civil.
Sem um espaço como esse, sequer as características desses crimes, que dificilmente são investigados, podem ser percebidas e utilizadas para subsidiar políticas públicas. Não à toa, o Brasil é o segundo país com o maior número de jornalistas assassinados da América Latina, atrás do México, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras.
A perspectiva do Judiciário frente ao direito à liberdade de expressão também foi objeto de discussão. O CNDH atuou em defesa da Classificação Indicativa, política que acabou fragilizada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de derrubar a vinculação horária à classificação. Também manifestou preocupação com punições rigorosas que possam intimidar os que usam a liberdade de expressão para veicular conteúdos críticos, como ocorreu no caso do jornalista sergipano Cristian Góes, punido após ter escrito uma crônica em que criticava oligarquias.
Neste caso, o Conselho destacou, em nota, que a “possibilidade de buscar informações e manifestar ideias livremente é uma conquista da sociedade brasileira e deve ser protegida por ela e pelas instituições do país, afinal não há democracia plena sem liberdade de expressão”. Afirmação ainda mais necessária nesses tempos de golpe, em que a repressão aos comunicadores – verificada em diversos momentos anteriores, como durante a Copa do Mundo – tende a crescer. Aliás, uma das agendas que deverá ganhar centralidade na próxima gestão do colegiado é exatamente a defesa da liberdade de expressão, tanto por meio de veículos midiáticos quanto nas ruas, durante protestos.
Temas de destaque durante a discussão das propostas de redução da maioridade penal, a criminalização de determinados setores da sociedade e a abordagem de temas como segurança pública, violência e direitos humanos pela mídia resultaram em amplo debate sobre os programas policialescos. A partir de provocação da Andi e outras organizações, o CNDH debruçou-se sobre essa questão, o que resultou na aprovação de um relatório que apresenta diversas recomendações aos órgãos públicos e também às empresas de radiodifusão, a fim de que atuem para garantir o respeito aos direitos humanos na mídia.
Do documento, duas propostas devem ser ressaltadas, a fim de que sejam apropriadas pelo conjunto da sociedade e reconhecidas como bandeiras de luta. Uma delas é que não seja veiculada a publicidade de órgãos públicos e empresas estatais em programas de cunho policialescos, seja como cota de patrocínio, seja nos intervalos comerciais ou por meio de merchandising. A segunda proposta aponta que sejam consideradas, na atividade de fiscalização do conteúdo dos programas de rádio e TV, para fim de aplicação de sanções, um conjunto de leis brasileiras e de tratados internacionais ratificados pelo país, que têm sido solenemente ignorados pelo Estado.
O relatório também destaca a necessidade de cumprimento das 19 resoluções aprovadas na 12ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, convocada e organizada também pelo CNDH. Entre elas, estão: elaborar e executar, nos meios de comunicação, campanhas sobre direitos humanos; garantir a democratização da comunicação e a aprovação do Projeto de Lei da Mídia Democrática e regulamentar o Marco Civil da Internet, garantindo os princípios de neutralidade de rede; respeitar as normas de acessibilidade na radiodifusão, com garantia de audiodescrição, legenda, janela e materiais em Libras, fonte ampliada, Braille e outros formatos acessíveis que garantam à pessoa com deficiência acesso igualitário à informação.
Uma das últimas ações da primeira gestão em relação à comunicação foi a defesa da manutenção do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), prontamente atacado por Temer logo após assumir ilegitimamente a Presidência da República. Por meio de Nota Pública, o CNDH posicionou-se contra a extinção do Conselho e exigiu a garantia desse importante espaço de participação da sociedade. Afirmou ainda que a extinção fragiliza o caráter público da empresa e afronta princípios constitucionais que estabelecem a comunicação pública como um direito da sociedade brasileira, além de ferir o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal da comunicação e ir de encontro ao que defendem órgãos vocacionados para a proteção dos direitos humanos.
Criação do Conselho Nacional de Direitos Humanos
Tributário de décadas de atuação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), o mais antigo colegiado do país, o CNDH foi fruto da luta da sociedade civil, que por anos demandou a efetivação de um órgão que atendesse aos chamados Princípios de Paris, adotados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU em 1992.
Alguns deles são: autonomia para monitorar qualquer violação de direitos humanos; autoridade para assessorar o executivo, o legislativo e qualquer outra instância sobre temas relacionados aos direitos humanos; capacidade de se relacionar com instituições regionais e internacionais; legitimidade para educar e informar sobre direitos humanos; e competência para atuar em temas jurídicos.
Até hoje, exatamente por não possuir uma instância com tais características, o Brasil é um dos poucos países da América Latina que não possui uma Instituição Nacional de Direitos Humanos credenciada junto à Organização das Nações Unidas (ONU).
Isso demonstra mais que um descaso. Trata-se, em verdade, de uma tentativa histórica do Estado brasileiro, muitas vezes o principal violador de direitos, de afastar a sociedade civil da definição de políticas desse campo, bem como de reduzir a cobrança interna e também internacional em relação ao cumprimento de tarefas básicas como defender, promover e reparar direitos.
Expressão da tentativa de afirmar a autonomia do Conselho, a principal mudança do CDDPH para o CNDH é exatamente a composição do colegiado. De acordo com a Lei nº 12.986, de 2 de junho de 2014, que instituiu o CNDH, este passou a ter 22 membros, dos quais onze são organizações da sociedade civil.
Possuem assento permanente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público dos estados e da União. Nove delas são eleitas pela própria sociedade civil. Além destes integrantes, outros onze são do poder público, entre os quais representantes do Ministério Público Federal (MPF), o que garantiu a destacada atuação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, e da Defensoria Pública da União (DPU), outra instituição que tem se mostrado cada vez mais relevante na defesa dos direitos humanos.
A lei que criou o CNDH também ampliou suas competências e, consequentemente, sua força institucional. No entanto, também houve perdas no processo de aprovação, como a dependência orçamentária do Conselho em relação ao governo. Apesar desses limites, a primeira gestão foi marcada pela tentativa de afirmar sua autonomia, abrir espaço para a participação da sociedade e abraçar uma diversificada agenda de intervenção.
O processo foi tortuoso. Ao longo do governo Dilma Rousseff, inicialmente dois ministros revezaram-se à frente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR): Ideli Salvatti e Pepe Vargas. Em setembro de 2015, a reforma ministerial de Dilma levou ao rebaixamento do status ministerial da SDH. As secretarias de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos foram reunidas no Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que passou a ter como ministra Nilma Lino. Parte dele, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos foi designada a Rogério Sottili.
A junção, aliás, fora criticada pelas organizações da sociedade civil que integravam o CNDH, as quais destacaram, em nota, tanto o desrespeito à defesa histórica da existência de pastas específicas quanto a possibilidade de criação de obstáculos à atuação em defesa dos direitos humanos.
Cada ministro, que acumulava o cargo de presidente do Conselho, imprimiu um ritmo diferente ao órgão, bem como adotou uma postura mais ou menos respeitosa em relação à autonomia dele, o que impactava o seu próprio funcionamento. Se as mudanças já causaram dificuldades para a atuação do órgão, este teve que enfrentar, ainda, a ruptura democrática confirmada com o golpe que levou Michel Temer ao poder.
Praticamente no mesmo mês do afastamento de Dilma, contudo, seguindo o regimento interno que determina a alternância, na presidência, entre governo e sociedade civil, esta, representada pela procuradora Ivana Farina, assumiu a presidência do CNDH. O mecanismo e a participação da sociedade civil, mais uma vez, mostraram-se fundamentais para garantir a continuidade da existência de um espaço que não esteja submetido às vicissitudes de governos que, em geral, não estão efetivamente comprometidos com o respeito aos direitos humanos.
Comunicação como direito humano e onda conservadora
Os enfrentamentos do CNDH no campo da comunicação não resultaram em vitórias concretas. Não seria de se esperar o contrário, tendo em vista a avassaladora onda conservadora que tem conseguido imprimir derrotas e devastar, rapidamente, direitos conquistados por meio de décadas de lutas da sociedade brasileira.
Não obstante, as medidas aqui relatadas significam avanços, tanto no debate público quanto no reconhecimento, inclusive por parte das organizações que atuam no campo mais amplo dos direitos humanos, da comunicação como um direito fundamental. E desse direito como uma bandeira que deve ser abraçada por todas e todos nós que queremos uma sociedade radicalmente distinta da que vivemos hoje. Ainda que temporária e merecedora de ações que deem continuidade a ela, essa é uma conquista que deve ser celebrada neste dia.
Para os que seguem, estaremos mais uma vez, ao lado das organizações da sociedade civil e das instituições públicas sérias que ainda nos restam, atuando pelo fortalecimento do CNDH e dos movimentos sociais comprometidos com a defesa de direitos. Porque direitos são indivisíveis e interdependes. E porque sabemos que eles nunca foram nem serão dados, mas arrancados pela mobilização popular.
Texto: Helena Martins, jornalista, coordenadora executiva do Coletivo Intervozes e representou o Coletivo no CNDH durante os últimos dois anos
Fonte: Carta Capital