Especialistas em políticas públicas explicam o livro recente do Ipea, que analisa como o Estado pode atuar positivamente a favor de iniciativas inovadoras.
Inovação e setor público são termos que não costumam ser positivamente relacionados. Quando o são, é geralmente para sobressaltar o papel negativo do Estado no processo inovador. O rigor burocrático, a profusão de regras e o peso de exigências tributárias sobre a sociedade seriam as faces anti-inovadoras do Estado. Entretanto, em todo o mundo, uma nova tendência surge com grande força, a fim de reconfigurar a relação entre inovação e a administração pública. Amparado nessa tendência e em ricos exemplos concretos, foi lançado o livro “Inovação no Setor Público: teoria, tendências e casos no Brasil”. A publicação do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e da Enap (Escola Nacional de Administração Pública) envolveu pesquisadores nacionais e internacionais e servidores públicos engajados em discutir, sobretudo de forma científica, a questão da inovação no setor público.
O que sobressai dos trabalhos da coletânea é que a dicotomia entre o setor público e o setor privado, e mesmo entre servidores públicos e empreendedores do mercado ou da sociedade civil, é antiquada e contraproducente. Ambos setores são fundamentais para que ecossistemas de inovação prosperem. A atuação pró-ativa do Estado, ao impulsionar sistemas de inovação, também atende ao crescimento de problemas complexos, transversais e incertos (“wicked problems”), além de demandas por melhores serviços e participação social no processo decisório dos governos.
Nessa dinâmica de rápidas e desafiantes mudanças, o setor público pode assumir diferentes papéis. Muito além do estereótipo de mero limitador de transformações, ou mesmo da função elementar de criação de condições à inovação, neste caso, provendo o suporte institucional básico, o Estado pode, intencionalmente, figurar como catalisador e agente de inovação. Enquanto agentes, governos aproveitam-se do intercâmbio de ideias e soluções com atores da sociedade e do setor privado.
Na prática, os quatro papéis (de restrição, de dar condições, de catalisador ou de agente) que configuram a relação entre setor público e inovação não são excludentes, mas cumulativos. A ação estatal como condição à prática inovadora historicamente envolve políticas e leis de inovação, que combinam compras públicas e investimentos diretos em ciência, tecnologia e inovação. A função de catalisador, mais moderna, sobressai por meio de experiências como, no caso brasileiro, os programas Inovativa, Start-up Brasil e InovaApps. Por meio de iniciativas catalisadoras, o Estado apóia empresas de alto potencial criativo e tecnológico, mas o faz de modo colaborativo e com foco na solução de problemas ou no aproveitamento de oportunidades.
Entretanto, é na análise do papel do Estado como agente da inovação que reside o ineditismo do livro recém-lançado. Os especialistas ali reunidos, em sintonia com a visão expansiva do setor público frente à inovação, reconhecem a necessidade de transcender a noção estigmatizada da inércia governamental e suas amarras legais, as quais parcialmente se justificam em virtude da própria natureza estabilizadora e da segurança jurídica que se espera de qualquer aparato estatal.
Inovar é hoje um imperativo. Ambicionar saltos de qualidade no funcionamento do Estado e na prestação dos serviços públicos, que possam levar o país a novos patamares de desenvolvimento e justiça social requer criatividade, colaboração e disposição ao erro. No entanto, experiências já testadas de incorporação abrupta de práticas e técnicas retiradas da iniciativa privada ou de realidades administrativas distintas à brasileira muitas vezes provocaram resultados indesejáveis. Sendo assim, é fundamental entender que tornar o setor público inovador não significa descaracterizá-lo, transformando suas organizações em cópias artificializadas de empresas privadas e dos mais novos modismos do mundo dos negócios.
Em particular, o livro permite compreender de maneira sistemática e empiricamente fundamentada as barreiras e indutores da inovação no setor público. Além disso, revela a inovação como um fenômeno multicausal. Por isso, sua incorporação à agenda de governo não é trivial, requerendo comprometimento. Os casos de sucesso no governo federal, tais como e-government, desafios e laboratórios de inovação, analisados no livro, demonstram que as estratégias inovadoras na gestão pública não seguem receitas pré-definidas e demandam não apenas boas ideias, mas também recursos e capacidades de implementação. Portanto, a criação da cultura de inovação nas organizações públicas deve se guiar pela oferta de condições necessárias e não suficientes.
O quebra-cabeça que sedimenta a cultura de inovação toca especialmente às dimensões de gestão de pessoas e de métodos organizacionais de trabalho. Quanto à primeira, ações nas organizações públicas com equipes interdisciplinares podem favorecer aprendizagem e criatividade, gerando incentivos (não necessariamente pecuniários) a servidores públicos e líderes que se engajem nessa dinâmica. Quanto aos métodos organizacionais, introduzir na rotina do serviço público práticas de avaliação formativa e dialogada (e não os assépticos check lists), além de experimentalismo, prototipagem/projeto piloto, gestão do conhecimento (tanto dos sucessos quanto dos fracassos), bem como a cocriação e coprodução constituem estratégias para o desenvolvimento de soluções inovadoras.
A incorporação desse conjunto de macro-diretrizes e inspirações poderá auxiliar a fomentar a cultura de inovação no setor público. Porém, tão fundamental quanto isso será estudá-la e testá-la de modo constante, respeitando-se as diversidades regionais e setoriais, assim como as peculiaridades intrínsecas ao setor público.
Bruno Queiroz Cunha e Pedro Luiz Costa Cavalcante são especialistas em políticas públicas e gestão governamental no Ipea.
Fonte: Nexo Jornal.