*Thiago Lopes Carneiro
Os(as) cidadãos(ãs) brasileiros(as) fizeram uma importante descoberta entre as jornadas de junho de 2013 e as eleições de 2014: pessoas podem discordar sobre quais são as melhores soluções para os problemas do país. Mas, talvez por falta do hábito de conversar com pessoas que pensam diferente, tal discordância se converteu em polarização.
Estudos entre 1990 a 2010 apontavam que poucos(as) brasileiros(as) sabiam diferenciar “esquerda” e “direita”. Mas esse cenário mudou bastante. No Brasil pós-2013, a política sobrepujou o futebol como assunto preferido nos encontros sociais. E a classe média, especialmente, finalmente aprendeu a diferença entre “esquerda” e “direita” – ainda que refletindo o gosto brasileiro de apelidar adversários: “petralhas” de um lado, “coxinhas” do outro.
Esses apelidos são apenas um artefato cultural que sinaliza o grau de polarização entre cidadãos(ãs). À luz da psicologia social, esses grupos discordantes passaram a enxergar o outro como exogrupo. O exogrupo é percebido como um conjunto de pessoas que não partilha dos mesmos valores e características do grupo ao qual um indivíduo pertence (este seria o endogrupo). E essa percepção de “nós contra eles” é suficiente para obstaculizar a comunicação e fazer estourar conflitos.
Dito de forma simples, esses grupos agem como se fossem duas nações competindo por recursos escassos. Para complicar, a delimitação dessas nações é abstrata, sujeita a muita discordância e provoca uma falsa simplificação da leitura do contexto social e político. Não obstante, os grupos opositores disputam ruidosamente a colocação de seus líderes em cargos políticos e a aprovação de políticas que afetam a todos.
Mas a polarização não é algo estranho aos ambientes democráticos. Pelo contrário, a maioria das democracias apresenta algum grau de polarização. Estranho é encontrar um país onde os dois maiores partidos políticos não figurem em polos opostos do espectro ideológico. E, logicamente, os(as) cidadãos(as) espelham essa cisão.
Ora, se a polarização é assim tão comum, que razões temos para nos preocupar com ela? Primeiro, porque a depender do grau de cristalização da percepção dos exogrupos, a comunicação fica inviabilizada. Esses grupos podem se comportar como se fossem realmente duas nações coabitando um território nacional sob o mesmo governo. Nesse contexto, desenhar o que seria o “interesse público” comum fica difícil.
Mas esta pode ser uma oportunidade para a consolidação de um valor democrático ainda pouco conhecido da maior parte da população: o franco debate entre pessoas de ideias opostas. É preciso que esse tipo de debate seja praticado desde a educação básica, para que ele não pareça algo estranho quando esses cidadãos se tornarem adultos autônomos. O ensaio do debate democrático exige expor os alunos ao desconforto de ver suas ideias serem sabatinadas. Isto pode suscitar resistências de pais e professores, e as soluções devem ser estudadas a cada caso concreto.
Note-se que as manifestações iniciadas em junho de 2013 perderam força a partir de julho. Era comum que os(as) participantes dos protestos discordassem sobre como suas demandas deveriam ser atendidas – as cores ideológicas despontavam e os participantes não mais queriam compartilhar a rua com as vozes dissonantes. O conflito ideológico ficou dormente até o período pré-eleitoral de 2014, quando se converteu em conflito partidário e a dificuldade de conversar com os posts discordantes ficou evidente nas mídias sociais.
Passadas as eleições, a polarização não arrefeceu. E então, como podem as instituições políticas estabelecer comunicação com essas “nações” rivais? De um lado, o governo sofre acentuada pressão da “nação” opositora. De outro, qualquer tentativa de conciliação com a oposição é malvista pelos eleitores que apoiaram a reeleição de Dilma Rousseff. A dificuldade de comunicação também se faz sentir no Congresso, onde cada decisão parece desagradar, irreconciliavelmente, a uma das “nações”.
Além das iniciativas educacionais, o franco debate deve ser praticado e encorajado no contexto das instituições públicas. As instituições públicas devem chamar os cidadãos à razão e à necessidade de tomar decisões cujo adiamento pode ser fortemente prejudicial aos digladiadores. Observemos: nos espaços de decisão colegiada, os mediadores estão viabilizando a acolhida das ideias diferentes, ou apenas reproduzindo o jogo do “nós contra eles”? Para se consolidar o franco debate como um valor democrático, é preciso que a surdez ideológica dê lugar à escuta democrática. Afinal, se a polarização faz parte do jogo democrático, precisamos nos acostumar a viver com ela.
(*) Thiago Lopes Carneiro – Doutor em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília. Sua pesquisa de doutorado investigou a influência de Estereótipos sobre Parlamentares, Educação Política e Contágio Comportamental na Participação Política, comparando Brasil e Suécia. Atualmente é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados. Colabora para o desenvolvimento de tecnologias de participação popular e transparência pública no Laboratório Hacker da Câmara dos Deputados, criado para facilitar o acesso de desenvolvedores independentes (hackers) às bases de dados abertos da instituição).