Pode o jornalismo fazer escolhas de cobertura com base em preferências políticas?
Lula durante evento em Berlim, na Alemanha, em dezembro: imprensa investiga sítio em Atibaia (SP) e tríplex no Guarujá (SP)
O jornalismo de verão no Brasil está patinando em gelo fino. O assédio a Lula é intenso, mas também desperta todo o tipo de suspeitas. O jornalismo está em frenesi, salivando ante a possibilidade, que enfim parece dotada de alguma plausibilidade, de derrubar um gigante. E o antipetismo vai junto, em júbilo. Neste quadro, complicadíssimo, apenas os mais radicais têm certezas. Muitas certezas.
Não sei dizer quanto aos fatos, mas presto muito atenção no jornalismo que protagoniza este momento. Publicam-se muitas coisas sensatas e muitas asneiras sobre a cobertura e as colunas desses dias. Cada post esconde uma deontologia, conjunto de “podes-não podes” de uma determinada profissão, algumas muito inquietantes.
Há 25 anos sou professor de jornalismo. Há uns 15 ensino política, democracia e comunicação política para futuros jornalistas. E acho que tudo podia ser menos complicado se ficassem claras, para leitores e jornalistas, as regrinhas simples que apresento abaixo:
1) A marcação forte, sem deixar espaço, “sobre pressão”, não só é tolerável como é desejável no jornalismo político. Em outras formas de jornalismo, como o especializado em vida privada de celebridades, é assédio. Mas no jornalismo que cobre fatos e pessoas do mundo da política é um serviço à democracia acompanhar com proximidade, investigar com minúcia, trazer ao público tudo o que for relevante.
Quanto mais o ator político sentir o sopro do jornalismo no seu cangote, a marcação cerrada da imprensa e dos formadores de opinião, mais se sentirá constrangido a comportar-se como se deve.
2) Ninguém que esteja ou tenha passado pela vida pública deve ser poupado dos constrangimentos do jornalismo. Não importam os seus méritos presentes e passados, as suas virtudes cívicas, o que a pátria lhe deve, o sentimento público sobre o seu caráter. Não esperem que alguém seja poupado.
3) É normal que partidos, grupos e atores políticos hegemônicos sejam submetidos a um monitoramento ainda mais intenso do que os outros. No seu quarto mandato presidencial consecutivo, é natural que a luz que se projeta sobre o PT e seus quadros seja bem mais intensa do que a projetada sobre qualquer outra força política.
Faz parte do ônus do próprio sucesso e há uma boa razão democrática: longas hegemonias são sempre desconfortáveis para a democracia; é preciso reforçar os constrangimentos sobre elas para que se mantenham virtuosas.
4) Por essas mesmas razões, o jornalismo tem que ter ainda mais cuidado ao acompanhar, monitorar e investigar os ditos e feitos dos atores políticos mais visíveis ou mais hegemônicos. A leviandade, o erro factual, a preguiça, o descuido, o sensacionalismo, podem pôr tudo a perder – e o que era um constrangimento para tornar o político vulnerável diante do olhar do público (pró-democracia) torna-se uma distorção voluntária para tornar o político simplesmente mais vulnerável para os seus adversários (ato antidemocrático).
Um jornalista, noticiário ou empresa da área de informação não podem se comportar como regicidas, matadores de reis e poderosos, cuja missão na vida é simplesmente demolir catedrais e derrubar mitos. O jornalismo político de alta qualidade democrática serve ao cidadão, não à própria vaidade e aos próprios apetites e desejos.
5) O jornalismo político de qualidade só deve ter um lado, o do cidadão, nenhum outro mais. Não pode escolher lados, a não ser quando um dos lados é a autocracia. Se o jornalismo político deve acompanhar e marcar sobre pressão o ator político o faz em benefício da transparência pública, para que os cidadãos tenham toda a informação necessária para pressionar o sistema político ou para tomar boas decisões eleitorais.
O jornalismo político não aperta a marcação para jogar junto com o adversário. O jornalismo político não joga, não pode jogar, não deve jogar o jogo político. Mais que isso: não pode parecer que joga.
6) O jornalismo político não deve selecionar fatos para cobrir, ênfases para dar, chaves de leitura para oferecer com base em preferências políticas. O jornalismo seleciona fatos, não há como cobrir todos. O jornalismo decide sobre que fatos merecem destaque e que ênfase estes merecem.
O jornalismo político adota ângulos interpretativos dos fatos pois a visão onisciente da realidade é só de Deus. Mas se fizer isso porque tem um “projeto oculto” (derrubar a rainha branca para empossar a rainha negra) ou uma “agenda encoberta” trai o seu público e a cidadania em geral, que se apoiam no jornal para tomar boas decisões e fazer bons julgamentos.
O jornalismo de qualidade se dedica a desvelar agendas ocultas e a desmascarar projetos de poder camuflados e colocará a perder toda a credibilidade se abandonar a sua identidade para ser, ele mesmo, portador de intenções disfarçadas e propósitos inconfessáveis.
*Wilson Gomes é professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia
Fonte: Carta Capital