Mentiras e boatos, desde sempre, fazem parte da história da comunicação humana. Apesar de não ser uma descoberta “nova”, o conceito de pós-verdade foi revigorado a partir da explosão de informações geradas ou reproduzidas na web.
Armando Medeiros de Faria*
O fenômeno da pós-verdade produz sinais de alerta inquietantes. Nas mídias sociais, a ausência de uma instância para estabelecer filtros, separar o joio do trigo e colocar em perspectiva visões distintas, cria um quadro propício para não acreditar em nada do que o outro diz, e se agarrar em sua própria convicção. O jornalismo, asfixiado, enfrenta distúrbios de identidade e profunda crise financeira. Nesse quadro, as possibilidades de reinvenção da imprensa tradicional em torno do pilar “credibilidade” diminuíram drasticamente.
Além do que poderíamos definir como mentira consciente, interessada, variadas formas de dissimulação da realidade, fantasias, ideologias e autoenganos constituem a subjetividade humana. Aspectos inconscientes e crenças individuais e coletivas, na releitura da realidade, estão presentes nas teorias da persuasão, na psicanálise, na trajetória das revoluções científicas e no pragmatismo da política (“o que importa é a versão, não o fato”, diz um antigo mantra de políticos mineiros).
Mas qual a definição corrente de pós-verdade? O significado de post-truth (pós-verdade), a palavra emblemática do ano de 2016, de acordo com Oxford Dictionaries, diz que versões apressadas ocupam a agenda social e pouco importa o nexo que tenham com a realidade. E mais: apelos emocionais capazes de mobilizar crenças pessoais são mais eficazes para conquistar a opinião pública do que fatos objetivos.
Na era da pós-verdade, pródiga de acontecimentos marcantes como a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e a disputada campanha eleitoral norte-americana, fica claro que guerrilheiros da “verdade” e guerrilheiros da “mentira” – ambos alternando posições – prosperam em contextos altamente inflamáveis e radicalizados. O Brasil pré-impeachment da presidenta Dilma Rousseff também ofereceu generosas porções de crenças e escassa racionalidade.
Em um tempo de nervos à flor da pele e explosão de conflitos, com julgamentos sumários e reações impacientes, a velocidade da informação, propagada em redes, traz idêntica advertência sobre tempos de guerra: a primeira vítima é a verdade. O próprio modelo de produção de informações em ritmo vertiginoso tem prejudicado a interpretação da realidade. O cenário pós-verdade cristaliza a ideia de um mundo movido a paixões e crenças. Onde a verdade não é mais necessária.
Os agentes públicos, como mostram os exemplos citados acima, entraram na espiral das versões e contraversões. Se a comunicação pública implica diálogo e participação a partir de premissas básicas como “não mentir para a sociedade”, como administrar as ondas de pós-verdade? Como estabelecer pontes para o Estado e a sociedade neste ambiente de divisões, polarizações e disputas intensas no campo simbólico?
As respostas do atual presidente dos EUA aos dilemas e disputas em torno da pós-verdade tem merecido debates intermináveis. Para sustentar suas narrativas, o titular da Casa Branca tem disparado duras críticas sobre o comportamento da imprensa. Trump, conhecido por disseminar crenças e abordagens extremistas, utiliza amplamente as redes sociais, um ambiente onde a checagem tem critérios frouxos. E é exatamente nas redes sociais que o presidente e seu núcleo duro ecoam, aos quatro cantos, o que ele próprio dissemina como sua “verdade”: “a imprensa é mentirosa”. As tensões chegaram ao ponto de o próprio Trump qualificar os jornalistas como as espécies mais desonestas do planeta.
Em fevereiro passado, já no cargo de presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez um animado comício no aeroporto de Orlando (Flórida). Além de defender as restrições aos imigrantes, política adotada tão logo assumiu o poder, fez referência a um suposto incidente na Suécia: “Veja o que aconteceu na noite passada na Suécia. Na Suécia! Quem poderia pensar… Suécia! Eles receberam muitos refugiados. Estão tendo problemas que nunca acreditaram ser possíveis”. Segundo a imprensa, “os primeiros surpreendidos foram os próprios suecos, que responderam com ironia nas redes sociais a respeito do último incidente de segurança inventado pela equipe de Trump. Mais cedo, a chefe de campanha de Trump nas eleições, Kellyanne Conway, justificou o veto aos imigrantes falando do massacre de Bowling Green, que jamais aconteceu, e seu chefe de imprensa, Sean Spicer, falou sobre outro ataque fictício que teria acontecido em Atlanta” (Leia mais).
A ousadia da comunicação governamental na era Trump, ao enfrentar pesadas críticas da imprensa e da sociedade, choca-se frontalmente com a visão de governantes sempre dispostos a conciliar informações oficiais com as expressas pela imprensa. Não se trata de fazer apologia do destempero de Trump, mas admitir que hoje os meios de difusão de informações – sem filtros – captam e reproduzem alucinações e delírios que misturam-se à realidade.
No caso da Casa Branca, a artilharia de pós-verdades vem de canais abertos, oficiais, sem sequer apoiar-se nas estratégias de disseminar informações em off. O governo estabelecido entra no jogo das “verdades alternativas” e o desconforto histórico nas relações poder e imprensa cede para uma situação de confronto aberto, no qual o governo usa intensamente as redes sociais para declarar que a imprensa não tem prerrogativa e nem credibilidade de falar em nome da sociedade.
É um exemplo de que o Estado, no contexto de uma sociedade em que a comunicação está comprometida pelo excesso, pode entrar com mais agressividade na disputa crucial sobre quem tem poder para estabelecer a “verdade”. De um lado, uma realidade na qual os emissores de notícias – na concepção de apurar, checar, ouvir diferentes vozes – não são mais facilmente identificáveis. E na outra ponta, autoridades e governantes cada vez mais engajados na propagação ou contenção de conteúdos pós-verdade. A comunicação do Estado sempre enfrentou o desafio da credibilidade e das contradições e desconfianças que nascem dos conflitos e interesses sociais. Sempre foi assim, mas agora de maneira muito mais intensa e veloz.
Tudo indica que os novos capítulos na equação comunicativa Estado, Imprensa e Cidadãos serão emoldurados pelas disputas de apropriação do burburinho digital das redes sociais e de escancaradas lutas em torno da “verdade”. A fiscalização do Estado, ou à crítica ao Estado, antes tradicionalmente delegada à imprensa, ganha novos atores empoderados de emails, posts e mensagens via celulares, um território de conteúdos disseminados massivamente e em alta velocidade, mas com baixo controle de qualidade. É justamente a perda de referência de credibilidade que colocará a comunicação pública no dilema de gastar energia para restaurar a verdade ou simplesmente aderir aos movimentos de disseminar crenças.
Para atuar na comunicação pública os novos tempos de pós-verdade desafiam atitudes aptas para um outro desafio: o dever de ser correto nas informações e a luta, desgastante, em combater quem dissemina fantasias, caminho pavimentado pela propaganda política e típica das disputas entre atores políticos que lutam para estabelecer hegemonia (no sentido de Gramsci, obter a “direção consentida”, a formação de consenso social para evitar o uso da força).
Para concluir, o contexto da pós-verdade enfraquece a comunicação pública porque vivemos um tempo no qual os procedimentos de checagem sobre a veracidade da informação estão sendo desprezados. A prática corriqueira e cotidiana da maioria das pessoas é compartilhar “convicções” nas redes sociais, imediatamente, sem quaisquer preocupações com autenticidade.
Nas conjunturas polarizadas, quando a maioria da sociedade fica à mercê de agentes cuja habilidade é criar cortinas de fumaça e manipular informações, vale pensar em mecanismos de proteção social. É necessário avançar em regulações que possam conter os inventores de mentiras e meias-verdades.
Apresentar convicções com base em desinformações pode ser compreensível, mas oferece riscos. Quando ninguém acredita mais que exista uma verdade, ou algo aproximado, quando o que vale é simplesmente acreditar na sua própria razão, parece que a verdade está sendo abolida ou expulsa da convivência social.
As consequências sociais deste contexto são inquietantes, não apenas para os agentes da comunicação pública. Na política, o enfraquecimento da noção e do valor da verdade é um perigo para a sociedade. O roteiro previsível aponta um horizonte de acirramento da intolerância e de estímulo ao totalitarismo.
A pós-verdade pode custar caro.
Texto: Armando Medeiros de Faria é vice-presidente da ABCPública – Associação Brasileira de Comunicação Pública, com mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Foi diretor de comunicação e marketing do Banco do Brasil e coordenador na Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Atualmente é consultor da LS Comunicação. armandomf@uol.com.br
Fonte: Brasília de fato