Dos 100 canais de maior audiência no YouTube, 36 deles abordam conteúdo direcionado ou consumido por crianças de 0 a 12 anos
Se você é um pai ou mãe de uma criança e tem acesso fácil à internet, já pode ter recorrido aos vídeos infantis disponibilizados no YouTube para entreter seu menino ou menina. Mas se algum deles mostrar brinquedos sendo tirados da caixa ou virando personagem de historinhas, pode ser que ele(a) esteja na verdade assistindo a um anúncio disfarçado.
Há um ano, a professora Luciana Corrêa, da ESPM Media Lab, vem mapeando o alcance de canais brasileiros do YouTube destinados aos jovens. O sucesso impressiona: dos 100 canais de maior audiência no YouTube, 36 deles abordam conteúdo direcionado ou consumido por crianças de 0 a 12 anos.
Em sua pesquisa, Luciana identificou mais canais do gênero, chegou a um montante de 160. Alguns exemplos de canais de sucesso nas suas categorias são “Galinha Pintadinha” (musical, não disponível na TV); “rezendeevil” e “VenomExtreme” (sobre games e “Minecraft”, um jogo de montar mundos); “TototoyKids” e “Brinquedos & Surpresas” (propaganda de brinquedos e “unboxing”); “Bel para Meninas” (youtuber mirim); “Chiquititas SBT” (novela da TV); “5incominutos” (da youtuber teen Kéfera Buchmann); e “Manual do Mundo” (educativo, parceiro do UOL).
Em vários dos canais observados, marcas e produtos destinados às crianças são apresentados nos vídeos. Isso é predominante na categoria “propaganda de brinquedos e unboxing”. Os vídeos normalmente trazem brinquedos populares como Barbie, “Peppa Pig”, “Frozen” e a marca de massa de modelar “Play-Doh”, sendo tirados das caixas, apresentados em detalhes ou em brincadeiras e histórias, com narração infantil ou com crianças à frente do vídeo.
Para o procurador do Ministério Público de Minas Gerais, Fernando Martins, esses tipos de vídeos ferem a resolução 163 da Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos, que diz considerar abusiva a publicidade direcionada a crianças. A resolução tipifica esse tipo de conteúdo quando traz elementos como linguagem infantil, efeitos especiais, excesso de cores, músicas infantis, personagens ou apresentadores infantis, bonecos ou similares, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço.
“Mesmo que não haja um contrato formal [entre a empresa citada e o produtor do vídeo], cai no conceito de comunicação mercadológica quando o público-alvo são menores de 12 anos. Nesses vídeos, não se pode citar marcas ou produtos e não cabe ao MP comprovar contrato de merchandising por trás disso”, diz Martins.
Segundo ele, os Ministérios Públicos Federal e Estaduais atuam conforme recebem denúncias desses casos, e daí abre inquéritos para apurar eventuais abusos. Foi assim que o MP-MG protocolou ação envolvendo as citações a marcas no canal Bel para Meninas, um dos mais populares entre o público mirim, após contato da reportagem do UOL.
“Entendo que há sim um abuso, pois o próprio Código de Defesa do Consumidor trata da questão da publicidade que se aproveita da falta de maturidade da criança”, diz Ariel de Castro Alves, advogado fundador da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). O artigo 37 do Código considera abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”.
O presidente da Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos), Synésio Batista da Costa, entende que o fenômeno dos vídeos de brinquedos e unboxing é “educativo”. “As meninas adoram bonecas, então qualquer uma delas pode querer criar um blog ou publicar um vídeo detalhando as características delas. A forma, a mensagem desses vídeos não é abusiva nem fere as normas do Conar”, disse. Se tais vídeos são mesmo patrocinados, ele disse não saber. “Não conseguimos acompanhar tudo”, justifica.
Para a professora de Ética e Legislação Publicitária da ESPM Denise Fabretti, esse fenômeno da publicidade infantil no YouTube é decorrência da resolução 163 da Conanda, que desde 2014 vem inibindo muitas empresas a continuar anunciando nos veículos mais tradicionais, como rádio e TV.
“Isso abriu espaço para outras situações que não se tem controle. Sou contra proibições do tipo porque se torna muito difícil comprovar se um conteúdo que cita marcas é espontâneo ou não. Posso subir um vídeo de festa de aniversário do meu sobrinho, com aparições de brinquedos, e não ter sido paga por isso. O caso das blogueiras foi um exemplo de como é difícil tomar providências”, diz ela, lembrando quem em 2012 o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) advertiu a Sephora e três blogueiras por propaganda velada dos produtos da loja na internet.
Além da propaganda, os canais também levantam outras questões delicadas, como o conteúdo inapropriado para menores. Canais como o “Gustavo Paródias”, citado na pesquisa, usam palavrões e linguagem não apropriada para redublar a novela infantil “Chiquititas”, e o “rezendeevil” tem uma série de vídeos chamada “Pelados”, com personagens de “Minecraft” nus.
O UOL procurou os donos dos canais “Galinha Pintadinha”, “Bel para Meninas”, “rezendeevil”, “VenonExtreme” e “Brinquedos & Surpresas”, mas eles optaram não participar da reportagem ou não responderam até o fechamento. O YouTube também não sugeriu porta-voz para falar sobre o assunto.
Os donos do “Tototoykids” responderam dizendo que moram “nos Estados Unidos, mas a princípio preferimos manter nossa identidade privada”. Não há em nenhuma parte do canal, ou nas redes sociais que o divulgam, os nomes dos responsáveis. Em um segundo contato, não responderam às perguntas enviadas por e-mail.
Quem fiscaliza?
A fiscalização de canais infantojuvenis ainda é ineficiente. Para Pedro Hartung, conselheiro da Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), responsável pela resolução que indicou a publicidade infantil como abusiva, aponta como órgãos fiscalizadores da lei os MPs, Procon e Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor, ligado ao Ministério da Justiça).
O conselheiro se diz favorável à presença de crianças na internet, mas faz ressalvas. “O youtuber mirim é um fenômeno muito interessante porque abre espaço para a criança se comunicar, mas, por outro lado, as empresas têm se utilizado dela para fazer merchandising, o que mostra a falta de ética de muitos anunciantes que se aproveitam da vulnerabilidade infantil para veicular publicidade”, critica.
Em nota, o Procon-SP disse que “está apto [a fiscalizar] e havendo denúncias, a fundação irá analisar e dar o devido encaminhamento com base no Código de Defesa do Consumidor”, mas destacou que cabe aos pais o monitoramento do conteúdo assistido pelos filhos na internet.
O Senacon não respondeu aos pedidos da reportagem, que também procurou a posição do Conar. A entidade, que costuma regular abusos da publicidade em rádios, TVs e meio impresso, disse que, no ano passado, o número de processos éticos envolvendo o meio digital foi aproximadamente o mesmo dos processos envolvendo TV, sem dar detalhes. No entanto, o órgão se isentou de verificar abusos envolvendo conteúdo editorial dos vídeos: “uma peça publicitária em página de mídia social está fora do alcance do Código”.
Cuidado dos pais ainda é vital
Mas o quanto é nocivo ou não expor a criança ao YouTube, afinal? Para a professora Luciana Correa, autora da pesquisa sobre os canais infantis, a mediação dos pais é o fator mais importante. “Como as crianças são nativas digitais e conhecem mais que os pais, muitos se afastam ou ignoram em vez de aprender com eles”.
No ano passado, a pesquisa TIC Kids Online, realizada no Brasil com apoio do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR) e do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) constatou que assistir a vídeos e utilizar redes sociais são as atividades mais citadas por crianças e adolescentes entre 11 e 16 anos no Brasil e mais sete países.
Maria Eugenia Sozio, pesquisadora do Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, ligado ao NIC.br), afirma que o uso da internet por parte das crianças é basicamente via dispositivos móveis. “Isso dá a eles mobilidade, privatização e a intensificação desse uso. Esse novo padrão é obviamente mais difícil para pais e professores de observarem o que ocorre”.
Irene Maluf, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia, não vê como totalmente prejudicial o uso do YouTube pelos jovens. “A dificuldade aumentou com o celular, então o que garante que meu filho não vai deixar de atender aos limites que dou a ele? É a educação dada anteriormente para ele, a confiança que ensinou ao filho. Ensina-se a ele esses limites do que é bem e mal, e até onde pode ir”.
Fonte: Uol