Ferramenta financiada coletivamente na rede já forçou parlamentar a devolver verba gasta com cerveja
Dupla de programadores trabalha para ensinar robô a identificar irregularidades em gastos públicos. PEDRO VILANOVA ARQUIVO PESSOAL
Um robô criado por um grupo de oito jovens para monitorar gastos públicos conseguiu descobrir, em apenas três meses, mais de 3.500 casos suspeitos envolvendo o uso da cota parlamentar por deputados federais desde 2011. Apelidada de Rosie – em referência a faxineira-robô do desenho Os Jetsons -, a ferramenta faz uma varredura nas milhares de notas fiscais emitidas pelos parlamentares para identificar se os gastos foram legítimos, ilegais ou superfaturados.
Rosie já encontrou, por exemplo, um pedido de reembolso de cervejas compradas por um deputado em um restaurante nos Estados Unidos, mesmo sendo proibido usar dinheiro público para comprar bebida alcoólica. Muitas anomalias foram encontradas também no valor das refeições. Ainda que as despesas sejam autorizadas unicamente para os parlamentares, a ferramenta detectou notas fiscais de dezenas de pizzas em um mesmo dia, um almoço de 12 kg em um self-service a até um pedido de reembolso de quase 1.500 reais em um restaurante que serve bode assado. Cruzando informações de bancos de dados públicos, como o da Câmara e o da Receita Federal, a ferramenta também identificou notas de refeições em cidades muito distantes em um curto espaço de tempo.
“Explicamos ao robô, a essa inteligência artificial, o que é um gasto e o que seria suspeito nele. Uma nota de 400 reais em uma padaria, por exemplo, é um valor muito alto e provavelmente ilegal. Mas, se for de um restaurante do chef Alex Atala, não é ilegal, ele é apenas alto e um absurdo para um gasto público”, diz o jornalista Pedro Vilanova, de 23 anos, um dos integrantes do grupo desenvolvedor do software, que defende que a Câmara imponha um limite para as despesas com alimentação dos parlamentares.
Após a varredura de Rosie, 849 casos foram auditados pelo grupo e destes, 629 foram denunciados à Câmara dos Deputados pelos jovens no próprio site do Legislativo no início do ano. As denúncias questionam, no total, cerca de 378.000 reais pagos com dinheiro público por 216 deputados. O projeto realizado pelo grupo recebeu o nome de Operação Serenata de Amor, em referência a um escândalo ocorrido nos anos 90 na Suécia, conhecido como “Caso Toblerone”, em que a então vice-ministra sueca perdeu o cargo por ter usado dinheiro público com gastos pessoais.
Devolução do dinheiro público
As descobertas de Rosie ainda não fizeram nenhum deputado perder o posto, mas já obrigaram alguns parlamentares a devolverem o dinheiro usado de forma irregular. “Em novembro, resolvemos testar o sistema e denunciamos 43 casos de irregularidade. Desses, já recebemos algumas respostas da Câmara e a decisão de nove devoluções”, conta Vilanova.
O primeiro caso de devolução após as denúncias do grupo foi do deputado federal Celso Maldaner (PMDB-SC) que teve que devolver 727,78 reais, referentes a 13 refeições feitas no mesmo dia e pagas com dinheiro público. Segundo a assessoria, o motorista do deputado cometeu um equívoco por ter colocado as notas no nome do político.
Comprovante que mostra compra de cinco cervejas em restaurante na Califórnia. REPRODUÇÃO
Uma devolução partiu também do deputado Odelmo Leão (PP -MG), eleito prefeito de Uberlândia. Ele gastou 190,05 reais da cota parlamentar (ajuda de custo dada aos políticos que tem de ser justificadas com notas fiscais) com o envio de correspondência da sua campanha eleitoral à prefeitura. Após a denúncia, o deputado teve que pagar ao Fundo Rotativo da Câmara dos Deputados o valor gasto de forma ilegal, já que não são permitidos gastos de caráter eleitoral com dinheiro público.
Outro deputado que já devolveu o valor de um reembolso pedido na cota parlamentar foi Vitor Lippi (PSDB- SP). O tucano pediu o reembolso de 135,15 reais correspondentes a cinco cervejas durante uma viagem aos Estados Unidos. Quando alertado da irregularidade, ele restituiu o valor à Câmara, e a assessora do deputado pediu desculpas em email enviado à Câmara. “Aproveito para assumir a responsabilidade pelo erro cometido, é de praxe dessa assessoria pedir a glosa de itens não autorizados de ressarcimento, tais como bebidas alcoólicas, mas infelizmente dessa vez não identifiquei o produto, já que estava em outra língua”, afirmou Sirlene Silva, assessora de Lippi, que lamentou ainda o transtorno causado.
O robô encontrou também uma fraude em uma série de três reembolsos do deputado Wherles Rocha (PSDB-AC) em um mesmo dia. Duas notas foram emitidas na capital do Acre, Rio Branco, e a outra, a 4.000 km, em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Após a denúncia, o deputado afirmou que na data se encontrava na cidade gaúcha e que a nota do Acre referia-se a uma despesa feita na semana anterior. Ainda segundo o tucano, como estava com pressa em Rio Branco, ele pediu para pagar outro dia e por isso um assessor só conseguiu quitar a dívida no estabelecimento e emitir a nota quando ele estava no sul do país. Mesmo explicando a coincidência dos dias, a Câmara constatou que a Nota Fiscal já encontrava com prazo de validade expirado e por isso o deputado teve que devolver 148 reais.
No fim do ano, o deputado Marco Maia (PT-RS), também teve que devolver dinheiro à Câmara, já que no meio do ano passado emitiu uma nota de 154,50 reais pedindo o ressarcimento de duas refeições em um mesmo local, o que é proibido. Em dezembro, ele teve que restituir 77,25 reais referentes a um almoço adicional.
A primeira fase da Operação Serenata de Amor termina neste mês, mas o plano dos oito integrantes do grupo, que também contam com o apoio de cerca de 400 técnicos voluntários, é continuar passando um pente-fino nas contas do Governo. Para custear a investigação inicial das despesas da Cota de Atividade Parlamentar, eles recorreram a um financiamento coletivo e conseguiram arrecadar 80.000 reais. “Entregamos o que prometemos, entregamos a Rosie. Mas agora queremos aprimorar ainda mais o robô para que os dados sejam ainda mais precisos. Vamos lançar um novo financiamento coletivo”, explica Vilanova. Para ele, a varredura de dados precisa alçar novos voos e não ficar presa apenas a cota parlamentar. “O programa e a operação podem ser replicado a outras esferas, como o Senado e empresas, por exemplo”, explica.
Fonte: El País