A desinformação como estratégia política desafia o jornalismo

O presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump não é o primeiro político a usar a desinformação para encurralar adversários e seduzir eleitores, mas ele é seguramente quem a oficializou como estratégia prioritária de comunicação nas semanas que antecedem a mudança de governo na nação mais poderosa do planeta.
Desinformação é o processo pelo qual uma notícia falsa, parcialmente falsa, conceitos distorcidos ou fatos fora de seu contexto são sistematicamente difundidos por personalidades públicas e pela imprensa gerando a percepção de que são informações confiáveis entre os consumidores de informações.
Não é um processo novo, pois sempre existiu na política, nos negócios e na diplomacia como uma forma de tentar mudar a forma como as pessoas veem personalidades, fatos, dados e eventos. Quem mais se aproximou do fenômeno atual foi o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels que eternizou a frase: “uma mentira repetida milhares de vezes vira uma verdade”.
Donald Trump vem seguindo este preceito ao pé da letra, tanto que nas semanas anteriores às eleições norte-americanas do dia 8 de novembro, a sua assessoria de comunicação inundou a internet com 8,9 milhões de micro mensagens na rede Twitter, mais da metade das quais produzidas por robôs eletrônicos e 55% delas disseminavam notícias falsas favoráveis ao então candidato republicano.
Mesmo depois de vencer as eleições, quando todos esperavam que Trump fosse moderar a sua retórica conservadora, ele continuou a fazer afirmações altamente contestáveis sobre meio ambiente, diplomacia mundial, comércio internacional e liberdade de expressão na imprensa e na internet. O sucessor de Barack Obama não se preocupa com o fato de suas declarações serem consideradas levianas por especialistas econômicos, políticos liberais e pesquisadores acadêmicos. Muito menos dá importância às consequências previsíveis e assustadoras da desorientação informativa entre os leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de redes sociais.
A maioria esmagadora da nova equipe republicana que assumirá a Casa Branca em janeiro aparenta confiar cegamente na máxima de Goebbels, tanto que o fenômeno batizado pela imprensa norte-americana como fake news (notícia falsa) passou a ser uma obsessão tanto dos jornais, telejornais como dos principais empresários da internet. Os grandes conglomerados da imprensa norte-americana e também do resto do mundo estão cada vez mais preocupados com a disseminação do fenômeno fake news porque ele atinge o cerne do negócio do jornalismo. A generalização da dúvida é uma consequência da irresponsabilidade quase criminosa de Donald Trump, e seus seguidores,  em distorcer fatos, estatísticas, conceitos e eventos.
Numa época caracterizada pela super abundância de informações e déficit de instrumentos para avaliar credibilidade, fica fácil aos políticos, empresários e tomadores de decisões usar o recurso da notícia descontextualizada porque a maior probabilidade é a de que ela não será contestada. Trata-se de um delito com alta chance de impunidade.
Delito com alta chance de impunidade
A descontextualização e distorção de dados tem sido um recurso quase corriqueiro entre políticos, governantes e empresários com a cumplicidade da imprensa, quando há coincidência de interesses entre os seus protagonistas. Esta situação não gerou consequências graves até agora porque os grandes grupos econômicos da mídia tinham um monopólio quase total da forma como a realidade era apresentada ao público. Na falta de versões alternativas, as fake news viravam verdade incontestável, até que algum fato histórico posterior, eventualmente,  desfizesse a versão original.
Mas esta situação está mudando rapidamente e o fenômeno desinformação na era Trump é talvez seja o prenúncio de que ainda enfrentaremos muitos problemas no futuro de médio e curto prazo. A responsável pela mudança e a internet porque ela permitiu que os indivíduos passassem a expressar seus pontos de vista à margem da mídia convencional, especialmente nas redes sociais. É um fenômeno comportamental (mudança de hábitos e rotinas) mas que já tem desdobramentos na política e começa a atingir a imprensa.
Richard Florida, um pesquisador da Universidade de Toronto e professor da Universidade de Nova Iorque publicou semana passada um estudo analisando o mapa dos resultados das últimas eleições presidenciais norte-americanas e chegou a uma conclusão preocupante: Trump perdeu na maioria das grandes cidades mas ganhou maciçamente nos pequenos condados do interior dos Estados Unidos, mostrando que sua mensagem carregada de fake news foi captada pelo eleitor das pequenas cidades que reagiram pelas redes sociais assumindo um protagonismo inexistente até agora.
As áreas em vermelho indicam condados onde Trump ganhou. Em azul, vitória de Hillary Clinton. Fonte Flickr
Segundo Florida, emergiu uma nova cara dos Estados Unidos, contrariando a imagem bem-comportada do público urbano, fidelizado pela grande imprensa. A mudança do discurso político e da agenda pública norte-americana não é obra só das esquisitices e provocações de Trump mas é a manifestação de uma opinião pública que não encontrava formas de se expressar até agora.
A internet está mudando a geografia política, não só dos Estados Unidos, mas em muitos outros países, da Europa, por exemplo, graças ao surgimento de novos fluxos informativos, que rompem o monopólio noticioso dos grandes grupos midiáticos globalizados. Ao que tudo indica não é um fenômeno episódico, mas sim algo que veio para ficar porque está ancorado numa realidade que não era mostrada pela grande imprensa.
Uma era de incertezas
Teoricamente seria um fato promissor porque diversifica a oferta informativa mas como em toda a grande mudança social, econômica e política, há um período inicial onde a incerteza, insegurança e desorientação predominam. Esta é a fase que estamos começando a viver.
Tudo indica que assistiremos nos próximos anos a uma dramática disputa pelo controle do discurso político e da agenda pública de debates. Será uma batalha onde a principal arma será a informação porque é ela que influi na forma como as pessoas veem políticos, partidos, governos, empresas e movimentos insurrecionais, entre eles o terrorismo. E nesta batalha o fenômeno das fake news ocupará um lugar destacadíssimo, como mostrou a eleição norte-americana de novembro.
Isto cria um contexto extremamente complexo para o exercício do jornalismo. A preocupação óbvia seria dar ênfase total à checagem de fatos (fact checking) mas a alternativa não é tão simples assim e nem vai permitir resultados imediatos. É praticamente impossível verificar a veracidade do avassalador volume de informações públicas diariamente na internet. Só a rede Facebook incorpora diariamente 4 petabytes de dados publicados por seus clientes. 83% dos líderes mundiais postam regularmente micro-mensagens no Twitter, cujos usuários publicam 6 mil tuites por segundo, em média. São números assustadores.
Além do volume outro complicador é a complexidade das informações inseridas na internet. Não é mais possível fazer avaliações sumárias do tipo certo ou errado, verdadeiro ou falso. Ao jogar volumes, agora já incalculáveis, de informações na web, a avalancha informativa multiplicou a quantidade de versões sobre um mesmo número, fato ou evento, o que complica e alonga o processo de verificação de credibilidade pelos jornalistas.
Ainda nem começamos a estruturar estratégias de ação para a checagem de fatos, mas pelo volume e complexidade das informações a serem verificadas parece inevitável uma descentralização e segmentação, envolvendo não apenas os jornalistas mas boa parcela da sociedade.
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Texto: Carlos Castilho, jornalista, professor e editor do site do Observatório da Imprensa
Fonte: Observatório da Imprensa

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