“Spotlight”: a imprensa quebrou a cultura do silêncio

Somente ao se comprometer com o sofrimento de inocente, o jornalismo produziu denúncias que abalaram a autoridade da Igreja Católica. 
João José Forni*
https://www.youtube.com/watch?v=I7TYGRwZbE4
A estreia do filme “Spotlight – Segredos Revelados” nesta semana, não é apenas a exibição de um grande filme. Com tudo que um bom roteiro e uma boa direção podem fazer. É, antes de tudo, uma aula de jornalismo. Principalmente pelo tema escolhido: a crise da Igreja Católica com o escândalo sobre pedofilia nos Estados Unidos.
É uma oportunidade de ver como o jornalismo investigativo, ancorado numa editoria corajosa e comprometida, com uma equipe profissional de alto nível, consegue enfrentar o poderoso lobby de uma instituição poderosa e secular. Mostra a força da imprensa se digladiando com a da Igreja e da sociedade local, católica e conservadora, que fingia não saber o que acontecia nos porões da diocese de Boston. O filme retrata um momento ímpar do jornalismo; mas protagoniza também um soco impiedoso e sem escrúpulos no estômago da Igreja.
Spotlight recupera o trabalho de uma equipe de jornalistas do The Boston Globe, jornal de Boston (EUA), no começo dos anos 2000, sobre denúncias, surgidas ainda de forma muito tímida, de abusos sexuais envolvendo religiosos da Igreja Católica. Boston sempre foi uma cidade de tradição católica. O foco era um padre que tinha sido investigado anos antes e continuava atuando na Igreja, apesar de 130 relatos de abusos em menores, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada.
Segundo o jornal britânico The Guardian, “o filme mostra que, na confraria sociável da mui leal e católica cidade de Boston, ninguém tinha grande interesse em quebrar o enjoado silêncio, cheia de vergonha, que tornou possível a cultura de abusos de padres e religiosos da Igreja Católica e, mesmo que de forma sutil, o filme sugere que o Boston Globe em si foi uma das instituições de Boston também afetadas pelo pecado da omissão. O jornal tinha provas ou denúncias de abusos 10 anos antes de a investigação retratada no filme começar. Mas de alguma forma havia um pacto não declarado para minimizar e “congelar” a história, que não andou. O que levou um novo editor, de origem judaica, e um repórter, ambos de fora de Boston, a iniciar as coisas” e provocar a direção do jornal.
O Boston Globe foi a primeira publicação mundial a denunciar a cúpula da Igreja, no início de 2002, de ter acobertado dezenas de padres acusados de molestar crianças e adolescentes. Na época, quando João Paulo II era o Papa, a mídia internacional repercutiu as reportagens do Boston Globe, mas a Igreja pareceu ainda não ter entendido a gravidade das denúncias. Pareceu surda e muda ante os depoimentos que foram aparecendo. O próprio cardeal americano, o todo poderoso Bernard Law, foi exposto ao se revelar documentos que comprovavam sua omissão diante das evidências de abusos por parte de padres da diocese.
Após a divulgação do escândalo, ainda se passaram 11 meses para o Papa João Paulo II aceitar sua renúncia. Ele foi afastado da diocese, mas recebeu uma “severa promoção”, como pároco de uma das igrejas-símbolo do Catolicismo, a Basílica de Santa Maria Maggiori, uma das quatro basílicas maiores de Roma. Ele só foi “punido” publicamente, muitos anos depois, em março de 2013, quando o recém eleito Papa Francisco visitou a Basílica e, ao vê-lo, não escondeu o constrangimento, dizendo que não “gostaria que Law frequentasse a Igreja”.
O escândalo revelado no início de 2002 pelo Boston Globe não foi suficiente para a Igreja Católica agir rapidamente. A cúpula da Igreja demorou a tomar providências sobre as acusações. Só acordou quando vítimas de abusos, por todo o mundo, foram para a Justiça, o que redundou em milhares de ações judiciais contra várias dioceses. Somente em Boston, até 2014, US$ 85 milhões foram pagos em indenizações; em Los Angeles, US$ 730 milhões; em Orange, US$ 100 milhões. Uma organização de bispos americanos estima que mais de US$ 3 bilhões foram pagos em indenizações a vítimas de pedofilia nos últimos anos, após o escândalo ser denunciado pelo Boston Globe.
Os depoimentos das vítimas nos Estados Unidos – dezenas de adultos que tiveram a coragem de denunciar – possibilitou que a partir daí milhares de pessoas que passaram em igrejas, colégios, abrigos, em vários países, saíssem das sombras, contando como foram abusadas, resultando num dos maiores escândalos da história da Igreja Católica. O ápice ocorreu por volta de 2010, quando na Irlanda, Espanha, Portugal, Alemanha e até mesmo no Brasil começaram a pipocar denúncias em cadeia. Revelou-se, então, o maior erro da Igreja, ao acobertar os acusados, transferindo-os de diocese, de igrejas, de cidades, onde eles continuavam com os abusos. Não havia registro policial; não havia punição. É desses erros que Bento XVI, depois, sob muita pressão, quando o escândalo tomou dimensão bem maior, em 2010, teve que pedir desculpas.
Spotlight tem o mérito de trazer para o cinema não apenas um episódio vergonhoso, que manchou a história da Igreja Católica, mas como o trabalho da imprensa, pela obstinação de alguns jornalistas, foi capaz de implodir um sistema hierárquico corrompido, conivente e autoprotegido. A sociedade sabia, muitos pais conheciam os abusos, a mídia também tomou conhecimento. Mas essa poeira, bastante indigesta para a hipócrita sociedade de Boston, foi varrida para baixo do tapete. Poucas vozes tiveram coragem de cutucar o vespeiro da Igreja. Alguns advogados, que aparecem no filme e ajudaram o trabalho da reportagem. Até a polícia se fechou. Prevaleceu durante anos a cultura do silêncio, inclusive com o respaldo das autoridades eclesiásticas e de Roma.
O excelente trabalho do diretor Tom McCarthy mostra como a cortina foi rasgada. O Papa Bento XVI teve que abordar o espinhoso tema e lamentar, porque, após as denúncias, não foi mais possível fingir que não sabia ou minimizar a gravidade dessa crise. Os tempos são outros. Mas há 13 anos, época de ambientação do filme Spotlight, o tema era considerado tabu, intocável. Esse o grande papel dos jornalistas, que mergulharam na reportagem, e da publicação, que lhes deu respaldo e condições de apurar, mesmo enfrentando resistência da sociedade, dos advogados, das fontes, de algumas vítimas, dos acusados, das autoridades e, no início, até da direção do jornal, sem falar no boicote ostensivo da Igreja local.
É nesse momento que a obstinação, o faro do jornalista e o trabalho investigativo brilha com toda a força, conseguindo levar de roldão toda uma estrutura criada para esconder os abusos. Passados 13 anos do acontecimento e cinco de quando o escândalo tomou dimensões globais, certamente que a Igreja Católica sai chamuscada desse filme. Mas, não há dúvidas, o jornalismo sai engrandecido.
É por isso que segundo o The Guardian, “este é um filme honrosamente destinado a evitar o sensacionalismo e a evitar o mau gosto envolvido, o que implica que os jornalistas, e não os sobreviventes de abuso infantil, são as pessoas realmente importantes aqui”.
O jornal americano ganhou o prêmio Pulitzer em 2003, com a cobertura. O filme está muito bem cotado para ganhar o Oscar. A Associação de Críticos da ‘América’ votou nele como melhor filme do ano e o Sindicato dos Produtores indicou o longa de Tom McCarthy para seu prêmio, que será outorgado em 23 de janeiro.
 
* João José Forni, professor de comunicação pública e comunicação das organizações, é especialista em comunicação e gestão de crises. Editor do site Comunicação &Crise.  Artigo publicado em http://www.comunicacaoecrise.com/site/index.php/artigos/891-spotlight-a-imprensa-quebrou-a-cultura-do-silencio
 
 

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