CARTA DE CONJUNTURA DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA, Número 2

CARTA DE CONJUNTURA DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA Número 02 | Dezembro de 2020

Introdução Sem a pretensão de fazer uma retrospectiva completa de 2020, o presente texto traz uma análise de aspectos relacionados à comunicação pública, democracia, direitos coletivos e prestação de contas para o cidadão. Reforçando princípios estruturantes da relação Estado/Sociedade, lançamos um olhar sobre os desafios que nos aguardam em 2021. Ao apresentar recortes de 2020, a ABCPública destaca temas relevantes para a comunicação entre instâncias do poder público e o tecido social, diante de uma pauta construída ora pela agressividade, ora pela negligência em relação a direitos do cidadão. A análise revela os seguintes pontos de atenção:
  • Ausência de coordenação, informação clara, orientação e assertividade em saúde pública;
  • Iniciativas de retrocesso na prestação de contas e transparência;
  • Ofensivas de desinformação como padrão de comunicação;
  • Uso não republicano de recursos públicos na comunicação;
  • Ataques à liberdade de expressão com intimidação do direito à crítica;
  • Necessidade de avançar na regulamentação das plataformas sociais e no uso das redes pelas autoridades públicas.
Complementam esta Carta os avanços e os desafios em curso nas matérias legislativas relacionadas à comunicação pública no Congresso Nacional, acompanhadas pela diretoria da ABCPública e, a partir do próximo ano, por um comitê temático criado na assembleia geral de novembro de 2020. A conjuntura atual fixa, como permanente, uma agenda em torno da qualificação e expansão da cidadania – em outras palavras, uma agenda na qual a comunicação pública deve catalisar todas as formas de inclusão e oportunidades iguais possíveis. A ABCPública se coloca em campo para contribuir ativamente nessa construção.
  1. Comunicação pública em tempos de Covid-19
O ano de 2020 ficará registrado na história pela perda inaceitável de mais de 190 mil vidas de brasileiros causada por um vírus. Um número similar às nossas mortes na Guerra do Paraguai e 2ª Guerra Mundial juntas – e multiplicadas por quatro. O desastre seria menor se houvesse melhor comunicação do Estado com os cidadãos. Faltou coordenação, informação clara, orientação e assertividade. Pela experiência acumulada na administração pública, sabíamos o que fazer. O epicentro da crise atingiu um dos ministérios mais robustos e antigos na história brasileira. O órgão central da saúde, apesar da larga experiência na condução de programas de prevenção e de vacinação de massa, do tempo de antecedência (primeiro caso de covid19 no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro) e também das cobranças públicas, não executou um plano suficientemente consistente de comunicação em tempos de emergência em saúde pública. Em 1904, morreram 30 brasileiros na chamada Revolta da Vacina, quando o desconhecimento sobre os avanços da ciência, a falta de capacidade de comunicação e a manipulação política levaram a população às ruas contra a vacinação. Mais de um século depois, e após o Brasil ter se tornado referência mundial em saúde pública, com a estrutura de serviços do Sistema Único de Saúde, instituições e profissionais de nível técnico extraordinário, campanhas eficientes que salvaram vidas e ampla experiência em mobilizar e informar sobre saúde, a involução é impressionante. Um exemplo emblemático: em 5 de junho, o site do Ministério da Saúde com informações sobre a pandemia foi retirado do ar. Após decisão do Supremo Tribunal Federal, quatro dias depois o portal voltou a disponibilizar dados sobre a Covid-19. A imprensa registrou a declaração do Presidente da República sobre a estratégia: “acabou matéria do Jornal Nacional [da TV Globo]”. Em resumo, houve uma ação direta para obscurecer a transparência. Paralelamente à descoordenação do Executivo Federal, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) atuou de forma institucional e ativa. Com ênfase na saúde e proteção dos cidadãos e cidadãs, a partir do dever e das responsabilidades do Poder Público, embasou uma série de campanhas de comunicação (publicidade de utilidade pública) que, em diferentes estados da federação, contribuíram para uma orientação firme e clara para a sociedade. Vale destacar, assim, o trabalho profissional e intenso de secretarias estaduais e municipais de comunicação – e órgãos correlatos – em parceria com os entes públicos locais diretamente envolvidos na gestão do combate à Covid-19. Mas não foi suficiente a dedicação de muitos, particularmente profissionais da saúde, especialistas e veículos de comunicação. Todos sabem o que acontece quando lideranças são contraditórias e obscuras. As consequências, neste caso particular, são enormes e difíceis de assimilar.  Autoridades têm um tipo de fé pública e recebem muita atenção. Suas vozes têm um alcance enorme. E nem precisam delas: seu comportamento pessoal é comunicação. Falando e agindo, são capazes de informar ou desinformar, consolidar crenças ou, pelo menos, plantar a desconfiança e gerar controvérsias falsas com consequências concretas. Sua responsabilidade é inerente e maior do que o cargo. A omissão, a desorganização e falta de ênfase na comunicação das medidas de comportamento a serem tomadas e, mesmo, a minimização do problema, tornaram o enfrentamento da Covid-19 uma vergonha para nossa bela história de comunicação em saúde.
  1. Comunicação pública e democracia
Potencializando o papel de liderança e de multiplicador de informações, o Palácio do Planalto manteve um padrão não adequado de informações sobre os temas de interesse nacional. O site Aos Fatos registrou, em 19 de dezembro, que, em 718 dias como presidente, o presidente da República teria feito 2.134 declarações falsas, enganosas ou distorcidas. No recorte adotado neste documento, dada a relevância do valor da democracia, foi selecionado o tema “Ditadura”, de modo comparativo, ou seja, captando as declarações oficiais e cotejando com a pesquisa realizada pelo projeto de checagem de informações Aos Fatos. A referência à ditadura mais repetida foi “o Marechal [Castelo Branco] foi eleito de acordo com a Constituição e não houve golpe em 31 de março”. Outro exemplo relacionado: o número de anistiados no país, hoje em torno de 3 mil, foi multiplicado pelo presidente por 12 e contabilizado como mais de 40 mil. Na temática da democracia vale mencionar, ainda, as falas nos atos e nas manifestações a favor da ditadura, ou convocação, em reunião ministerial, para que o povo usasse armas.
  1. Financiamento público da desinformação
O uso de recursos públicos para fins não republicanos – que não sejam impessoais, transparentes, eficientes e de interesse para o bem coletivo – caracteriza, em si, prática antidemocrática. Agrava-se quando tais recursos são utilizados de forma a propagar e beneficiar a desinformação, o discurso de ódio, o obscurantismo. A CPMI das Fake News teve acesso a dados sobre os canais na internet em que foram exibidos anúncios do Governo Federal contratados por meio da plataforma Google Adwords.  A pedido da relatoria da comissão, a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados elaborou Informação Técnica, datada de 23 de abril de 2020, sobre a veiculação de publicidade oficial no período de 1º de janeiro a 10 de novembro de 2019. O documento conclui e comprova a existência de volumosa inserção de publicidade paga com verba pública em sites de notícias falsas, incluindo diversos que já vinham sendo monitorados pela CPMI, totalizando volume anunciado de 263 mil impressões distribuídos. Seguindo o mesmo rastro da CPMI, o jornal Folha de S. Paulo publicou, em 9 de maio de 2020, reportagem segundo a qual planilhas da própria Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) indicam a destinação de verbas de publicidade do Governo Federal, como na campanha que antecedeu a votação da Reforma da Previdência, a sites de fake news, sites de jogo e sites infantis – em russo. Para além dos desvios de finalidade nos anúncios para sites responsáveis por desinformação, cabe refletir sobre a pertinência, do ponto de vista republicano, de se realizar campanhas publicitárias com recursos públicos para promover a aprovação de matéria em discussão no Congresso Nacional, desequilibrando o debate. Essa prática não é exclusiva do governo federal em sua atual gestão e ultrapassa a função de esclarecimento, de transparência ou de promoção do debate público.
  1. O Estado da vigilância: os relatórios do governo federal
Outra prática de desvio de finalidade de recursos públicos (financeiros, humanos e patrimoniais) no âmbito federal tem sido a elaboração de dossiês e relatórios – e congêneres – sobre supostos opositores. Em julho, veio a público a informação de que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), produziu, em caráter sigiloso, relatório contendo nomes e, em alguns casos, até fotografias e endereços de perfis em redes sociais de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do “movimento antifascismo”, além de professores universitários. Tratando de “Ações de Grupos Antifa e Policiais Antifascismo”, o relatório foi elaborado após o manifesto “Policiais antifascismo em defesa da democracia popular”, divulgado por servidores da ativa e aposentados de órgãos de segurança pública no dia 5 de junho. Mais recentemente, em dezembro, a mira do Governo voltou-se para jornalistas, intelectuais, articulistas, YouTubers, influenciadores digitais e outros profissionais contrários à política econômica do ministro Paulo Guedes. Reportagem de Rubens Valente revelou que a empresa BR+ Comunicação foi contratada pelo Governo Federal para, entre outros serviços, orientar como lidar com um grupo de 77 jornalistas e outros formadores de opinião considerados influenciadores em redes sociais – divididos em “detratores”, “neutros” e “favoráveis”. O acompanhamento do que é publicado sobre determinado órgão ou autoridade é uma prática corriqueira. Contudo, o mapa transmitia ao governo classificação ideológica sobre os profissionais listados. Sabe-se, o rótulo “detratores” foi amplamente utilizado por órgãos de repressão da ditadura militar para tratar supostos inimigos do governo. Trata-se de ameaça à livre imprensa, ao pluralismo, ao livre exercício do jornalismo, ao direito à informação, à crítica e à liberdade de expressão – todos pilares da democracia. 
  1. Comunicação pública e as mídias digitais
Duas ações no Supremo Tribunal Federal abordam bloqueios do presidente da República a seguidores no Twitter e no Instagram. No primeiro caso, o voto da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, ressalta ser ‘antirrepublicano’ o ato do presidente da República de bloquear seguidores que fazem comentários críticos a seu governo nas redes sociais. Para a ministra, o Presidente da República não pode excluir do debate público o cidadão “que não o adule, agrade ou lhe seja favorável”. No processo envolvendo o Instagram, onde o Bolsonaro bloqueou um advogado que fez um comentário contra o governo, o relator, ministro Marco Aurélio Mello, votou para mandar Bolsonaro desbloquear os seguidores. No voto, assinalou que o presidente da República não pode exercer o “papel de censor”, visto que sua conta nas redes sociais não se limita a publicar informações pessoais. “Dizem respeito a assuntos relevantes para toda a coletividade, utilizado o perfil como meio de comunicação de atos oficiais do Chefe do Poder Executivo Federal. A atuação em rede social de acesso público, na qual veiculado conteúdo de interesse geral por meio de perfil identificado com o cargo ocupado – Presidente da República –, revela ato administrativo praticado no exercício do Poder Público”, afirmou o relator. Já a Procuradoria Geral da República, estranhamente, já que seu conteúdo, em grande parte, diz respeito à administração do País, considera os perfis de Bolsonaro como particulares, pessoais, e, assim, não estariam submetidos às normas da administração pública. Por outro lado, é importante destacar a iniciativa positiva da plataforma pública gov.br. Atualmente, 85 milhões de brasileiros estão cadastrados no gov.br, o que corresponde a 63% das 134 milhões de pessoas que acessam a internet no Brasil, de acordo com o relato de Adriana Fernandes no jornal O Estado de S. Paulo (02/12/2020). O projeto pretende se tornar uma sólida e eficiente plataforma de serviço público para os cidadãos. É como se fosse um “poupatempo” digital, concentrando vários serviços, desde atendimento pelo INSS à emissão de boletos dos Departamentos de Trânsito. Durante a pandemia, já foram digitalizados mais de 460 serviços. Ainda no âmbito das mídias digitais, prosseguem, em diversos países, esforços para atribuir maior grau de responsabilidade às empresas proprietárias das redes sociais. A Comissão Europeia tentou a autorregulamentação, com o Código de Prática em Desinformação, assinado em outubro de 2018. Foi o primeiro conjunto de normas autorreguladoras em todo o mundo a combater a desinformação. Na última semana de novembro o governo do Reino Unido tomou a decisão de “alocar a nova Unidade de Mercados Digitais (DMU) dentro da agência reguladora de concorrência do país (Consumer Markets Authority), equivalente ao brasileiro CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). É um indicativo de que a iniciativa irá além das fronteiras do jornalismo, abrangendo também empresas e cidadãos”, informa o Media Talks do Jornalistas&Cia. Mais do que as distorções na enxurrada desinformativa dos tempos atuais – que favorecem os adversários da democracia – a preocupação com os monopólios das megacorporações de tecnologia coloca na agenda o controle dos dados dos cidadãos e o poder nefasto dos oligopólios – quaisquer que sejam – na vida econômica e social. É preciso avançar.
  1. Agenda Legislativa da Comunicação Pública
O segmento da Comunicação Pública deve se organizar para pautar e contribuir com o aprimoramento do marco legal dessa atividade no país, que é tão importante à consolidação da democracia e ao exercício da cidadania. Precisamos construir uma Agenda Legislativa e fazê-la ter relevância nos parlamentos brasileiros. Nesse sentido, a ABCPública tem monitorado, há 4 anos, no Congresso Nacional, os temas que dizem respeito, direta ou indiretamente, ao trabalho dos comunicadores públicos. No último dia de votações de 2020, a dois dias do Natal, um texto apresentado na Câmara dos Deputados tem potencial para democratizar o acesso à informação pública, ampliar a transparência e desburocratizar a relação com o cidadão. Em seus 55 artigos o PL 7843/2017, que segue para o Senado, lança as bases do “Governo Digital”, com muitas diretrizes e metas cujo cumprimento não será possível sem atuação dos setores de comunicação de todo o poder público. Chamamos a atenção para dois pontos, embora haja muitos mais. O artigo 3º diz que “são princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública: VII – o uso de linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão”. Estar presente na esfera pública, mas não ser compreensível, não difere muito de estar ausente. Aprimorar a linguagem num país de graves deficiências educacionais é democratizar o acesso à informação. O artigo 5º diz que “o acesso e conexão para o uso de serviços públicos poderão ser garantidos total ou parcialmente pelo governo, objetivando o acesso universal à prestação digital dos serviços públicos e redução de custos aos usuários, nos termos da lei”. Tudo que for produzido por órgãos públicos, para as diversas plataformas, pode se mostrar completamente ineficiente se o cidadão brasileiro não tiver conexão com a Internet para acessá-lo. Mais da metade dos brasileiros conectados à Internet o fazem por meio dos limitadíssimos planos pré-pagos. É fundamental atuar junto ao Senado para aprimorar esse texto e garantir que o governo não apenas “possa” ampliar a conexão ao conteúdo público, mas assuma a responsabilidade por fazê-lo. Nesse sentido, já existe um projeto de lei em tramitação na Câmara. Trata-se do PL 619/2020, de iniciativa do presidente do Conselho Consultivo de Comunicação Social da Câmara, deputado Damião Feliciano (PDT-PB), e dos outros 4 membros deputados (PSL, PSDB, PCdoB, Podemos), construído em diálogo com a diretoria da ABCPública. O projeto determina que o conteúdo digital de origem pública tenha tráfego gratuito pelas operadoras e provedores, dada sua importância no exercício da cidadania e no combate à desinformação. Inspirado no direito de antena público exercido pela “Voz do Brasil” e no must carry que a Lei do Cabo deu aos canais públicos, esse projeto precisa avançar com o apoio dos comunicadores públicos, seja para regulamentar o art. 50 do PL do Governo Digital, seja para aprimorá-lo. Outro tema que temos monitorado e buscado influenciar é o apelidado PL das Fake News. O PL 2630/2020 tem o propósito de instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Aprovado no Senado, em versão mais adequada que a inicial, tem o propósito de alterar o comportamento nas redes, desestimulando os discursos de ódio e a disseminação de conteúdo falso nas grandes plataformas da Internet. Seguindo o posicionamento do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, da qual fazemos parte, e da Coalizão para os Direitos na Rede, discordamos desse caminho, por considerar que é preciso avançar para além de princípios, e em uma legislação própria. Porém, se a inclusão ocorrer, todo esforço deverá ser feito para dar ao texto a forma mais adequada possível. Por fim, é necessário citar um projeto de lei que visa garantir proteção aos conteúdos públicos digitais, para que não sejam eliminados quando há trocas de gestão em órgãos públicos e poderes, como vergonhosamente ocorre em nosso país. O PL 2431/2015, de autoria da Dep. Luiziane Lins (PT-CE), foi aprovado pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, e aguarda votação na Comissão de Cultura, na forma de um substitutivo do relator, Dep. David Miranda (PSOL-RJ), construído em diálogo com a ABCPública e o Observatório da Comunicação Pública (UFRGS). Além de assegurar a proteção ao patrimônio digital público, esse projeto também impõe aos poderes e órgãos – e seus respectivos chefes – condutas que vedam o bloqueio de cidadãos e a desinformação. Na agenda de 2020, vale mencionar ainda a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, obrigando a administração pública a adotar normas internas adaptadas ao novo marco legal. Acompanhar e contribuir para a segurança e transparência das informações pessoais coletadas por empresas públicas e privadas é tarefa também dos  comunicadores públicos. Brasília, 29 de dezembro de 2020.
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