Perduram, no início de 2023, vínculos com a orquestrada rejeição às urnas. Na sequência, com o resultado da disputa eleitoral em 2022, reações violentas organizadas que resultaram, por fim, o ataque à democracia perpetrado em 8 de janeiro recente.
De um lado, a recondução do Estado para o caminho de políticas públicas inclusivas, ainda que tímidas perante o déficit de bem-estar social, e medidas conectadas à agenda global de arranjos defensivos para enfrentamento das mudanças climáticas.
De outro, o autoritarismo visceral, ou sublimado, com espectro desconcertante ao alçar, nos cargos eletivos, representantes populares com alto teor de extremismo antidemocrático. E muitos, agora, com a responsabilidade formal e oportunidades fornecidas por funções político-constitucionais.
Este pano de fundo é completado por uma agenda pública repleta de temas que incluem a busca do fortalecimento da democracia e o retorno à normalidade institucional em meio a uma imensa desigualdade social materializada em diferentes perspectivas, incluindo renda, gênero, raças e etnias e um ativismo de ódio, desinformação e conflito que permanece – ponto de atenção que vamos esmiuçar mais adiante.
Qual o olhar do comunicador público para tais movimentos? Quais os principais desafios? O que é importante e urgente ao mesmo tempo?
A CMO Survey 2022 ouviu 320 executivos de empresas de diferentes e a pesquisa – com apoio da American Marketing Association – revelou que 11,7% do orçamento total de empresas são investidos em Comunicação. Segundo a pesquisa global da norte-americana Gartner, também com executivos, o valor destinado à comunicação corporativa cresceu de 6,4% em 2021 para 9,5% em 2022, sinalizando tendências de incrementos graduais e persistentes (42% esperam aumento no orçamento para 2023) ou manutenção sem cortes do volume investido (33% esperam que o orçamento de 2022 seja mantido em 2023).
Estes dados do campo privado servem como indicativo a ser investigado: do orçamento nacional quanto e qual percentual está sendo dirigido para a comunicação pública, aquela voltada para as necessidades efetivas do cidadão? É questão central tratar da dimensão do Estado na comunicação com a população. Trata-se de cumprir compromissos constitucionais de prestar contas, informar, esclarecer, dialogar com a sociedade e estimular a participação. Trata-se, também, de priorizar a comunicação com o cidadão para que ele possa acompanhar o governo, mas também ser ajudado pelo Estado em suas diferentes necessidades. Comunicação deve fazer parte das políticas públicas e os comunicadores devem ter a garantia e a responsabilidade de participarem dos processos de planejamento, acompanhamento e execução das políticas públicas, evitando o papel de mero divulgadores.
Quando avaliamos o “núcleo duro” do Estado – os serviços de saúde, educação e segurança, embora consensualmente relevantes – é nítido constatar o quanto, mesmo em tais áreas, existem atendimentos precarizados, onde os cidadãos sofrem com oferta de serviços deficiente e insuficiente para o volume de demandas de 208 milhões de brasileiros, de acordo com a prévia do IBGE.
Sob esta ótica, de um Estado democrático e eficiente para os mais vulneráveis, o desafio número um parece ser, portanto, como inserir a comunicação como valor agregado às funções públicas. O que significa ter estruturas robustas, carreira de profissionais qualificados e recursos para custeio e investimentos.
Num cenário de escassez de recursos públicos, como colocar a comunicação pública no círculo decisório e num orçamento que não seja simplesmente estipular o dinheiro que vai para mídias tradicionais e redes sociais veicularem conteúdos e narrativas diversas? Falar que somos estratégicos resolve?
Um segundo desafio é estabelecer quais critérios chave de êxito na comunicação pública: basta saber índice de matérias positivas, pautar assuntos, quantidade de matérias veiculadas, alcance dos conteúdos reproduzidos, cliques e engajamento nas redes sociais? São os melhores indicadores, ou podemos avançar para o cidadão e seu grau de satisfação com os serviços e atendimento prestado? Afinal, qual o impacto que a área de comunicação busca? Sabemos o que queremos? Que transformações queremos causar? Qual nossa responsabilidade? Os dirigentes sabem, estão engajados nela?
Um terceiro ponto neste início de semestre nos leva a uma temática antiga – propagação de boatos e mentiras, hoje “fake news” –, grande dor de cabeça diante do avanço do negacionismo e de extremismos de todo tipo. Como chamar a atenção, conquistar e fidelizar as audiências – de jovens a idosos – a um compromisso íntimo com a democracia, com o bem público, com a igualdade social? Como agir na comunicação quando, como antecipou Cazuza, “me interessam pequenas poções de ilusão, mentiras sinceras me interessam”?
A revista inglesa The Economist abordou, em número recente, o tema da disseminação de teorias conspiratórias no contexto da pandemia de Covid. Artigos e reportagens tentam entender a lógica que as dissemina e as transforma num vetor político de grande importância, nos dias atuais.
Considerando que neste começo de ano e de novo mandato presidencial, as atenções do País estiveram voltadas para eventos terroristas que, em boa parte, tiveram como um dos principais catalisadores a torrente de teorias assim, é preciso entender o mecanismo que as produz, as robustece e dá a elas um poder enorme para sequestrar a agenda de um País.
Trata-se, em suma, da comunicação pública prover conhecimentos e ferramentas para ajudar o País a mudar de assunto e se concentrar no que realmente beneficia o cidadão.
Para isso, o olhar do Comunicador Público deve ser, mais do que nunca, o resultado de uma abordagem interdisciplinar. Essa pode ser uma das chaves de êxito da comunicação. Nos comitês de campanha das últimas eleições, por exemplo, o trabalho conjunto entre os monitoramentos estratégicos da comunicação e seus desdobramentos em medidas jurídicas implacáveis junto às plataformas de mídias sociais foram de resultado inquestionável no controle das fake news e, consequentemente, na preservação da normalidade do processo.
Como materializar trabalhos conjuntos/interdisciplinares dessa natureza, nas estratégias de comunicação pública? Obviamente, a assistência jurídica é apenas uma das parcerias necessárias.
The Economist elenca em seus textos outros fenômenos recentes que precisam ser entendidos. Em paralelo, e como consequência do crescimento da já conhecida indústria das fake news, por exemplo, especialistas apontam a emergência da “indústria da verdade”: estruturas de fact-checking que começaram a se multiplicar especialmente a partir de 2014, muitas delas como institutos de pesquisa, mas um outro tanto, em franca expansão, como empresas lucrativas que têm parcerias econômicas com grandes plataformas de redes sociais.
Na prática, critérios e mecanismos para identificar o que é desinformação mudam de mãos o tempo todo e os interesses que os delineiam são de toda ordem. Qual é a parcela dos cidadãos mais vulnerável à manipulação desses critérios? De que forma a Comunicação Publica precisa se estabelecer como um interlocutor crível? Com quais dessas organizações da “indústria da verdade” a comunicação pública deve buscar parcerias?
A revista também aponta a gamificação da vida cotidiana como vetor a ser compreendido, e que pode ter impacto direto na vida política e na solidez da democracia. É um fenômeno sedutor que, lastreado por um nobre senso de esforço coletivo, nos lança nas emoções de uma perseguição da verdade a partir de associações e de investigações amadoras de fatos colhidos na web e nas redes de contatos.
Essa ideia de nobre senso coletivo delineado por critérios questionáveis sobre o que é verdade pode, como vimos, culminar em acontecimentos deploráveis como aqueles do dia 8 de janeiro. Trata-se de grande desafio para a segurança de todos e para a comunicação pública.
O comportamento social relacionado aos hábitos e consumo de informações é outra dimensão para esquadrinhar. O relatório “Journalism, Media, and Technology Trends and Predictions 2023”, trabalho conjunto do Reuters Institute e da University of Oxford, mostra o desinteresse pela informação jornalística, bem como a dificuldade das plataformas das big techs em reter jovens. O estudo propõe caminhos, por exemplo, fornecer conteúdo explicativo, formatos de perguntas e respostas, mais recursos para podcast e áudio digital.
Para o campo da comunicação pública, pode ser acrescentado que o foco deve ser na compreensão e exercício pleno e ativo da cidadania. É indispensável produzir e fazer circular conteúdos consistentes – e não as “realizações” governamentais, oficiais. A educação para as mídias, contribuindo para fortalecer a democracia e melhor compreensão da realidade, é uma responsabilidade de todos, em especial, instituições, governos, empresas e órgãos públicos. Cada instituição pública enfrenta, cada vez mais, o desafio de alcançar o cidadão com a melhor informação possível sobre os assuntos de interesse público em que elas atuem. É um esforço que se torna cada vez mais essencial e, em alguns casos, dramático, recordando, novamente, a “democracia sob ataque” em 8 de janeiro passado.
Esta Carta de Conjuntura – ao abrir o primeiro semestre de 2023 – tem o viés de levantar dúvidas e sugerir questões relevantes a serem enfrentadas entre tantas que afligem nossa responsabilidade como profissionais e cidadãos.
Este instrumento será modificado ao longo de discussões ao longo do semestre com todos os nossos associados e interessados em transformar a comunicação pública brasileira.
Diretoria ABCPública
Brasília, 10 de fevereiro de 2023
Leia também as cartas anteriores:
Agosto de 2022
Dezembro de 2021
Julho de 2021
Dezembro de 2020
Dezembro de 2019