Gestão Pública: O conteúdo local, o bebê e a água do banho

*Cássio Marx Rabello da Costa

Nunca uma empresa brasileira esteve no centro das atenções dos brasileiros como a Petrobras nos dias de hoje. Em meio a tantas notícias ruins, quando o assunto é Petrobras, espera-se sempre algo negativo. O caldo entornado pela revelação dos mal feitos trouxe consigo uma série de questões que transcendem à simples gestão de uma grande empresa.

Tudo que acontece com a Petrobras, desde a campanha “O Petróleo é nosso!”, se mistura com a vida cotidiana dos brasileiros, de alto a baixo, desde o abastecimento dos tanques dos carros, o preço das passagens de ônibus, ou de avião, até a taxa de formação bruta de capital do País.

O setor Petróleo e Gás (P&G) afeta todas as sociedades contemporâneas, aqui e alhures. Quando uma crise se instala na empresa que, no caso brasileiro, se confunde com o próprio setor de petróleo e gás, é inevitável o seu transbordamento pelos diversos setores da sociedade.

A crise da Petrobras, para além da questão da corrupção e a devida apuração de responsabilidades, que segue curso próprio, trouxe à tona a discussão sobre três pontos fundamentais que envolvem o ambiente regulatório do setor de P&G: o regime de partilha ou de exploração, a obrigatoriedade de participação da Petrobrás em novos investimentos e a exigência de conteúdo local nas contratações da empresa.

Frequentemente, atribui-se ao ambiente regulatório parte dos desafios que a Petrobras enfrenta. Falando especificamente sobre o conteúdo local, vale lembrar que as regras estabelecidas e os percentuais exigidos são definidos por meio de profunda discussão com o setor produtivo. Onde há dificuldades ou falta de competição os percentuais são flexibilizados.

Contudo, há que se considerar que, em tempos de crise global, as encomendas se encolhem e a competição se torna acirrada e até mesmo desleal. Se não houver algum dispositivo que estimule a produção doméstica e a apropriação de tecnologias pela indústria, corre-se o risco de “primarizar” o setor de P&G, o que equivale a condena-lo a se tornar um mero produtor de mais uma commodity, com todos os riscos que isso representa, inclusive o emblemático fenômeno da “doença holandesa”.

Uma das críticas à política de conteúdo local se assenta na falsa premissa de que qualquer tentativa de incentivar a produção local estimularia a criação de reservas de mercado e perda de competitividade. Falando de competitividade, há que se considerar que o ambiente de negócios brasileiro, sob o enfoque de métricas mundialmente aceitas, é pouco competitivo. Boa parte de fatores que determinam a competitividade não estão sob a governança do empresário.

Sendo assim, ou aceitamos que o nosso setor produtivo está submetido a condições desvantajosas que lhe impõem perda de competitividade e, portanto, deve contar com compensações, ou tratamos imediatamente da melhoria das condições competitivas, a começar pela melhoria da eficiência nas atividades de responsabilidade do Estado. Esse é o dilema central. Reduzir a questão à produtividade aos fatores “da portão para dentro” das fábricas é pura miopia.

A cadeia de suprimentos do setor de P&G tem um enorme poder de arraste no setor produtivo. Cria ou destrói empregos de milhares de engenheiros, metalúrgicos, pesquisadores, empresas de bens de capital e por aí vai. São milhares de estudantes, profissionais e empresas que anseiam um lugar ao sol nesse fantástico mundo de oportunidades que a geologia reservou ao Brasil.

Vale lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro, a começar pela Constituição Federal, estabelece que as regras para a exploração dos chamados “bens da União”, entre os quais estão incluídos os recursos minerais e a  concessão de serviços públicos, é competência de Estado. Adicionalmente, a própria constituição federal define que o mercado interno “integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País”.

Não há, a priori, nada de errado no ambiente regulatório brasileiro, o incentivo à produção local é instrumento fundamental de política industrial adotado largamente, principalmente nas economias mais desenvolvidas. Basta citar o bem sucedido by american act, legislação que dá suporte a políticas de apoio a compras de produtores locais dos EUA, desde meados do século passado.

Ao contrário do que alguns querem supor, a política de conteúdo local não significa reservar mercado para meia dúzia de empreiteiros, funcionários e políticos corruptos. Nesses tempos de necessária lavagem a jato é preciso ter claro o que interessa e o que não interessa à sociedade brasileira e cuidar para que, no processo de limpeza, o bebê não seja atirado fora, junto com a água suja do banho.

(*) Cássio Marx Rabello da Costa é engenheiro mecânico, mestre em engenharia de produção e especialista em política industrial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). O artigo não reflete necessariamente a opinião da Agência.
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