O último semestre de 2021 apresentou um conjunto de vulnerabilidades na comunicação pública.
Desobediências e boicotes à Lei de Acesso à Informação, orçamento sem transparência no Legislativo, ondas de desinformação sobre a pandemia, violência contra jornalistas, irregularidades na publicidade do Executivo federal e ciberataques às plataformas governamentais fazem parte de um panorama hostil aos direitos sociais da plena informação e da necessária transparência dos órgãos do Estado.
A conjuntura desafia a comunidade dos profissionais que atuam no setor público a abraçarem a construção de marcos legais e institucionais no sentido de frear ameaças e retrocessos.
Lei Geral da Comunicação Pública
Um movimento simultâneo de resistência e construção de marcos sólidos para a comunicação pública faz parte da agenda dos comunicadores públicos e da sociedade. As premissas são o dever da transparência, o direito à informação e adoção de práticas republicanas na gestão dos recursos públicos destinados à publicidade e a outras formas de comunicação (digital etc.)
Neste sentido, a proposta de uma Lei Geral da Comunicação Pública, elaborada pela ABCPública, foi protocolada de forma oficial na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados e já ganhou numeração: SUG 19/21. O texto protocolado ficou em consulta pública por 30 dias no site da associação e a consolidação da redação final foi realizada a partir das sugestões e comentários.
A SUG 19/21 tem o objetivo de garantir que o interesse do cidadão seja o fundamento da comunicação feita por instituições públicas e foi apresentada no fórum de encerramento do I Congresso Brasileiro de Comunicação Pública, Cidadania e Informação, realizado em outubro, com mais de 1200 participantes.
O ano de 2022 certamente será impulsionado pela continuidade dos movimentos de defesa da comunicação pública e também de lutas para acelerar os processos legislativos que fortaleçam a prática do direito à informação e do dever da transparência.
Como explorado, nos tópicos a seguir, o olhar retrospectivo sobre a conjuntura da comunicação pública, em 2021, evidencia carências, lacunas e restrições ao pleno direito à informação e efetiva participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
Os problemas estruturais da comunicação pública, agravados nos últimos anos, apontam claramente o sentido de urgência na construção de um escopo legal robusto que fortaleça, no dia a dia, os direitos sociais no campo da comunicação pública.
Obstáculos para consolidação da Lei de Acesso à Informação
No ano marcado pelo aniversário de 10 anos da Lei de Acesso à Informação (LAI) a conjuntura tem reiterado a necessidade de avanços concretos para efetiva implementação da transparência na comunicação pública no País.
Pedidos de informação são negados ou prazos longos para atender as solicitações ocorrem regularmente. A ausência de uma estrutura pública, independente, para fiscalizar e garantir o cumprimento da legislação, tem ficado evidente.
As tentativas de protelar, recusar divulgar ou resguardar o sigilo de documentos públicos têm sido amplamente noticiadas. Em novembro, apesar de solicitação da Folha de S. Paulo com base na LAI, órgãos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário se recusaram a informar as respectivas comitivas que fizeram voos oficiais em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira). Antes, em julho, o Governo Federal impôs sigilo de 100 anos sobre os crachás de acesso dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto e sobre o cartão de vacina presidencial.
Outro agravante ao pleno direito à informação é o fato de que não houve a devida regulamentação da LAI nos municípios. A lei não entrou em vigor em milhares de municípios brasileiros. Estima-se que apenas 10% das cidades brasileiras regulamentaram a lei. Os demais municípios privam a população de informações básicas sobre a administração pública.
Transparência ameaçada
A necessidade de fortalecimento da transparência pública no País, evidenciada no caso da LAI, mostrou-se ainda mais premente no o chamado “orçamento secreto”, lamentável processo de aprovação de verbas legislativas sem conhecimento amplo dos cidadãos e sem o controle da sociedade.
Com validade para 2022, as novas regras exigidas pelo Supremo Tribunal Federal, não sanaram o problema original de falta de publicidade e transparência. É imprescindível que as verbas públicas, sejam quais forem, não fiquem sob o manto do sigilo, sem identificação clara de quem indicou o gasto, sem que a sociedade saiba para qual finalidade, quais beneficiados e muito menos para qual região onde foi destinada.
Desinformação durante a pandemia e contra o sistema eleitoral
O ano de 2021, com a pandemia no epicentro, deu continuidade aos conflitos políticos sobre vacinação e formas de controle da doença. As divergências extrapolaram o campo da saúde pública e das discussões técnicas e científicas e contaminaram fortemente falas, discursos, informações, produzindo ondas de contrainformações e mentiras com impacto profundo na forma de fazer comunicação pública para os cidadãos. Ao contrário de orientações claras e precisas, a população assistiu narrativas opostas envolvendo o respeito pela ciência, tecnologia e inovação na sociedade brasileira e, de outro lado, um processo de corrosão e descrédito da ciência na saúde pública, conduzido por agentes governamentais cuja liderança mais expressiva ocupa o elevado cargo de Presidente da República.
O relatório da CPI da Covid no Senado detalhou sete ondas de desinformação durante a pandemia da Covid-19: origem do vírus, isolamento social, isenção de responsabilidade do Presidente da República, tratamento precoce, número de mortes em 2020, uso de máscaras e eficácia das vacinas. As ondas são caracterizadas pelo surgimento de conteúdos falsos sobre um mesmo assunto, em um curto espaço de tempo. A agência Lupa acrescentou, ainda, três avalanches de notícias falsas, duas com participação do presidente da República: hospitais supostamente estariam vazios durante a pandemia, caixões que estariam sendo enterrados vazios e utilização de chás como medicamento contra a Covid-19.
Outra onda de desinformação foi registrada por relatório da Polícia Federal (PF) ao investigar ataques contra o sistema eleitoral brasileiro e o Tribunal Superior Eleitoral. O documento aponta que o presidente da República agiu de forma “direta e relevante” para espalhar desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro, aderindo “a um padrão de atuação já empregado por integrantes de governos de outros países”. O relatório da PF faz parte de um inquérito sobre disseminação de notícias falsas, sob a responsabilidade do ministro Alexandre Moraes.
Agressões contra jornalistas
A violência contra jornalistas – em eventos com a presença do Presidente da República – configura grave ataque à liberdade de imprensa e materializou a visão antirrepublicana que vem permeando a comunicação governamental.
Entre tantos episódios, a truculência contra os profissionais que faziam a cobertura do G-20, em Roma, e a agressão contra equipes de reportagem do SBT e da Rede Globo, no sul da Bahia, são emblemáticos do padrão atual de autoritarismo e intolerância.
Irregularidades nos investimentos em publicidade
Paralelamente ao padrão tenso de relacionamento institucional com a imprensa, a publicidade oficial retoma processos licitatórios de comunicação (R$ 450 milhões para agências de publicidade, R$ 60 milhões para agências de comunicação e, ainda não confirmado, empresa de pesquisa).
A assimetria entre audiência e investimentos publicitários realizados pelo Governo Federal, problema apurado por relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), recoloca a questão da transparência e de critérios adequados no gasto público com comunicação. Estão relacionados a outras irregularidades detectadas pelo TCU como o investimento em canais e mídias (geralmente na web e redes sociais) que promovem violência, disseminam preconceitos e outras atividades ilegais.
Ciberataques às plataformas governamentais
As vulnerabilidades da comunicação digital surgiram em 2021 como uma agenda prioritária. Vale registrar o caso dos ataques ao Tribunal Superior Eleitoral e mais recentemente ao Ministério da Saúde. Neste último, lamenta-se a falta de transparência das autoridades em relação ao ciberataque sofrido pelo Ministério. As ameaças e atos de hackers estabelecem, como resposta, a ação prioritária de rever e atualizar, de forma consistente e sólida, as políticas de proteção das plataformas públicas, evitando exibição de dados privados dos cidadãos e prejudicando o acesso aos serviços digitais.
As ameaças de hoje impulsionam a comunicação de interesse público para um movimento contínuo de reiterar que o poder dos cidadãos precisa ser exercido em todos os espaços e formas de relacionamento do Estado com a Sociedade.
Tornar visível aquilo que os aparatos governamentais ocultam e, por outro lado, exacerbar o direito de saber/participar é o fio condutor.
Brasília (DF), 13 de dezembro de 2021.
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