Cenários para 2018: como ficarão nossos direitos na eleição mais digital da história?

A censura afasta indivíduos do debate democrático do qual têm direito de participar, mas a questão se torna mais complexa quando se nota que a violência e o discurso de ódio cumprem o mesmo papel.

E as próximas eleições? O que vai acontecer em 2018? As perguntas que povoam a cabeça de todos não vêm à toa. Tanto o acirramento da polarização política vivida no dia a dia como a “terra arrasada” produto da Operação Lava Jato crispam as análises e turvam as previsões. Mesmo sem saber o tom e quais são os personagens principais da tragédia anunciada, uma coisa é certeza: o palco dessa ópera será a internet.

A abertura da peça se dá num clima de tensão. “Não se podem menosprezar fake news”, diz Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral. As tais “notícias falsas” e a influência que tiveram em outros processos eleitorais recentes estão pintadas como vilãs da trama. O assombro está no poder que factoides produzidos anonimamente podem ter a partir de seu grande catalisador: o poder das plataformas de internet.

Há muito ainda a ser revelado. O espantalho das “fake news” oculta outros problemas reais e graves. Direitos como acesso à informação, liberdade de expressão, privacidade e condições básicas do debate democrático encontraram novas ameaças na era digital. O que nos espera nas eleições mais “digitais” que já tivemos?

A lógica por trás das ‘fake news’: a polarização nas redes

O jornalismo profissional nos mostrou que, tão importante quanto saber quem disse o quê (o que muitas vezes, em, si é notícia), é revelador saber o não dito, entender os porquês. Por ser fruto de investigação, checagem e análise, a informação política de qualidade é um insumo produzido a muito custo por comunicadores. Nesta fábula já datada de antes da internet, aprendemos que a mídia tradicional não é o único lar possível do jornalismo ético e profissional: iniciativas independentes por vezes revelam o que grandes conglomerados não têm interesse em mostrar.

A chegada de novas plataformas de internet, como o Facebook, mudou radicalmente a circulação dessa informação. Seja competindo pelos mesmos anunciantes, seja por serem estruturados por algoritmos difíceis de entender, esses revolucionários intermediários colocaram em xeque pequenos e grandes produtores de conteúdo ao fazê-los competir em busca de cliques. No que clicamos primeiro? No conteúdo viral ou na longa matéria analítica? Cada curtida e compartilhamento alimenta o algoritmo que, assim como um editor lutando por mais e mais atenção de seus leitores, calibra-se.

Desde a eleição de 2014, passamos por um processo social e político que calibrou tais algoritmos para a polarização política. É isso que compartilhamos. Dizer que o Facebook é o responsável por isso é um confortável autoengano. O país está politicamente dilacerado, seja pela eleição mais concorrida da história, pela maior operação anticorrupção ou, ainda, pelo conturbado processo de impedimento de sua presidenta. Neste cenário, estamos expostos àquilo que tendemos a concordar ou ao que vemos com desconfiança?

Dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo, demonstram que a polarização tornou refém o consumo de informação: “aquela notícia vira uma arma de combate”, disse Pablo Ortellado, do Monitor. E, como numa guerra, a ética nem sempre prevalece e os produtores de “armas” lucram. Concorrendo lado a lado das custosas checagens e reportagens investigativas estão teorias da conspiração ou manchetes sensacionalistas que jogam o jogo da polarização. Produzindo tais “matérias” estão organizações híbridas, algo entre veículos de mídia e agências de marketing digital – e, por vezes, partidos ou movimentos políticos. Exemplos não faltam: competindo de igual para igual em cliques e compartilhamentos com a Folha de S.Paulo e O Globo, o Jornalivre têm, dentre seus administradores de conteúdo, membros do Movimento Brasil Livre, segundo a Vice.

Não é o que parece! Bots e outras técnicas de ilusionismo

Entretanto, manchetes virais e pegajosas teorias da conspiração não se movimentam sozinhas. Além de contar com usuários incautos que as compartilham em razão de suas próprias crenças, a tecnologia abre outras possibilidades para quem quer controlar o debate público. Tão importante quanto a informação verificada é ter acesso ao autêntico debate sobre ela.

Como revelou Juliana Gragnani, da BBC Brasil, agências de publicidade digital estão vendendo o uso de perfis falsos com diferentes níveis de automatização (de “bots” aos controlados por humanos) para quem quer simular movimentações nas redes. Com o uso de tais técnicas, nem sempre o debate que vemos na rede corresponde a uma conversa realizada por pessoas reais. Mais do que nos convencer sobre algo, o uso coordenado de perfis que simulem pessoas reais pode promover a atenção de algum assunto em desfavor de outro, ou, ainda, dar a alguém a impressão de que esta ou aquela ideia é muito apoiada. O quão importante pode ser influenciar qual será o próximo trending topic?

O que é uma eleição sem liberdade de expressão e participação de todos os envolvidos?

Não será simples encarar esse conjunto de problemas. Um sobrevoo por diferentes abordagens anuncia problemas na liberdade de expressão dos brasileiros em um momento chave de sua história. De um lado, soluções para a desinformação podem acarretar controle de conteúdo, o que transformaria tais remédios em venenos; de outro, certos crivos são importantes pois protegem a participação de grupos que sofrem violência.

Nas instituições estatais circulam iniciativas de cunho criminalizante, o que pode abrir precedentes questionáveis para censura. Ao mesmo tempo, políticos digladiam-se por restos de credibilidade no pós-Lava Jato, o que torna o terreno frutífero para propostas legislativas que lhes garantam mais controle sob discurso. No mesmo sentido, assediam o Judiciário que os investiga, buscando a remoção de críticas e o constrangimento de seus autores. É necessária a consolidação de crivos judiciais sólidos para identificar usuários de internet e remover conteúdos para que o medo das “fake news” não se torne algoz da livre expressão.

Respondendo ao clamor público, move-se também o setor privado.  Apontadas por muitos como heroínas, novas iniciativas de “fact-checking” têm dificuldade em ganhar escala e em fazer suas verificações repercutirem tanto quanto os boatos que desmentem. Entre as plataformas de internet (Google, Facebook), uma das abordagens é a de combater o uso de perfis falsos. Outra, de minorar a circulação de boatos caça cliques dentro de seus feeds ou resultados de busca, sufocando financeiramente seus produtores. Por sua vez, cada uma das iniciativa gera demandas por transparência por parte da sociedade civil. Quais são as políticas estabelecidas por empresas privadas que impactarão na circulação de discursos políticos?

Na definição de tais critérios públicos e privados, a transparência e a sensibilidade de que a credibilidade não é necessariamente sinônimo de mídia tradicional são fundamentais. Meios de comunicação são vetores de poder político e econômico e sempre foi importante debater como democratizá-los e ampliar o número de vozes a serem ouvidas.

Neste âmbito, não são desprezíveis as possibilidades trazidas pela tecnologia. Porém, apesar das minorias terem ganhado acesso à maior vocalização de suas perspectivas com a internet, maus crivos podem mais uma vez silenciá-las. A censura afasta indivíduos do debate democrático do qual têm direito de participar, mas a questão se torna mais complexa quando se nota que a violência e o discurso de ódio cumprem o mesmo papel. Seu enfrentamento exige compromissos corajosos de todas as partes envolvidas, especialmente das instituições e plataformas de internet. Como tornar visíveis outras vozes se a violência as torna mais custosas para serem entoadas?

A privacidade como proteção da autonomia de participar e decidir

Das várias novidades de 2018, porém, uma ainda parece despercebida: serão as primeiras eleições nas quais será permitido realizar propaganda paga na internet. Não é qualquer anúncio – na reforma da lei feita em 2017, o que está permitido é o impulsionamento de conteúdos oferecido por plataformas de internet, os “posts patrocinados”. Não vale “comprar” curtidas ou qualquer serviço “extra”.

A magnitude dessa mudança precisa estar muito clara. Qual a diferença da propaganda política feita na internet e em outras mídias, como rádio e a TV? Na televisão, peças publicitárias são veiculadas para todo país – ou estado – ao mesmo tempo. Todo mundo vê mais ou menos a mesma face da campanha: do jovem rapaz de classe média alta de Porto Alegre à mãe de quatro filhos de uma comunidade ribeirinha no Pará. Claro que candidatos podem modular seu discurso a depender da agenda de campanha, mas a propaganda na mídia televisiva achata suas propostas e ideias num envelope só.

Na internet o formato é diferente. A modulação é muito mais complexa, implicando no que chamamos de “microdirecionamento”.

A lógica já opera há anos. A partir de uma série de tecnologias de coleta e tratamento de dados pessoais sobre nossa vida, hoje em dia ficou muito mais fácil nos vender algo. Um chocolate, por exemplo. A partir de registro e cruzamento de hábitos de consumo ou de navegação na internet é possível produzir conhecimento sobre quais chocolates comemos, quanto estamos dispostos a gastar, em quais momentos do dia estamos mais suscetíveis (e como reagimos) à sugestão de comer chocolate. Melhor para a indústria de chocolates: recursos de marketing para aumentar suas vendas podem ser gastos de uma maneira mais eficiente. Mas e se o chocolate for um candidato, e o processo de escolha e “sugestão” for a campanha eleitoral? Essas técnicas podem ser utilizadas?

Com a coleta e o tratamento de dados pessoais de eleitores é possível descobrir correlações sobre gostos pessoais e inclinações políticas e “elaborar”aquele anúncio para aquela pessoa. Em 2016, já ficou notória a história da empresa Cambridge Analytica, que prestou esse tipo de serviço para Donald Trump nas últimas eleições nos EUA. Por sua vez, a propaganda paga torna possível catapultar anúncio “microdirecionado” ao feed daquele eleitor específico. Ou, ainda, testar anúncios diferentes para o mesmo micropúblico, para conhecer qual tem mais impacto.

Tudo isso tem consequências para a autonomia de cada um pensar, decidir e participar do debate político. De um lado, a sugestão da publicidade torna-se poderosa quanto mais o anunciante conhecer o seu “alvo”, de outro, o quanto o “alvo” tem consciência do que se conhece dele? Importante lembrar que esta história se passa em um país que não aprovou qualquer legislação que proteja os dados pessoais de seus cidadãos, o que os afasta de ferramentas jurídicas que coibiriam práticas abusivas que podem ser praticadas por fornecedores de campanhas eleitorais.

É possível sair ileso desse bombardeio?

Suponha que as declarações de um candidato transformem-se em uma manchete ultrassensacionalista que jogue com a polarização. No imaginário popular sua imagem já está fixada. Imagine que esta campanha se aproveite dessa imagem para fazer o impulsionamento de um anúncio “microdirecionado”. Combinando com o uso de perfis falsos, a campanha passará a impressão que o candidato em questão é amplamente apoiado. Por fim, sua equipe jurídica processará o cidadão que o satirize. Tudo passará pela tecnologia, mas nem tudo a olho nu. E a disparidade de recursos entre campanhas pode agravar ainda mais esse quadro.

Como vimos, as soluções mágicas se parecem com cobertores curtos – ao cobrir uma parte, deixam outras vulneráveis. Não há, entre os personagens da trama, um salvador da pátria.

Organizações da sociedade civil têm apontado caminhos interessantes:  a transparência e princípios internacionais podem nos ajudar na proteção de direitos e precisamos dizer às campanhas de todos os candidatos que “não vale tudo”. Sua atuação é fundamental para chamar governos e empresas para o debate e para revelar os limites de suas iniciativas. Problemas complexos exigirão soluções complexas, pensadas a partir do esforço compartilhado de diferentes setores.

Aprenderemos com nossos erros, especialmente porque o emprego de mais tecnologias por campanhas é um caminho de mão única. Nessa trilha, acesso à informação, liberdade de expressão, igualdade e privacidade são pilares da democracia. O mínimo que fazemos é estarmos atentos para usar a tecnologia para protegê-los, não ameaçá-los.

Fonte: Nexo Jornal.

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