Artigo de Armando Medeiros de Farias, vice-presidente da ABCPública
Apelos emocionais e que mobilizam crenças pessoais são mais eficazes para conquistar a opinião pública do que fatos objetivos. Este é o significado de post-truth (pós-verdade), a palavra emblemática do ano de 2016, de acordo com o Oxford Dictionaries.
Mas o que é realmente novo nesta definição?
O enfoque sobre as pessoas assimilarem conteúdos a partir de um processo de memorização e percepção seletivas, de acordo com seu repertório de convicções, está presente nas teorias de comunicação que buscaram, no século passado, desvendar os caminhos da persuasão.
A psicanálise demonstrou o poder dos aspectos subjetivos e inconscientes nas ações dos indivíduos. Mal entendidos também são frequentes na trajetória científica de teorias políticas, econômicas, sociais e seu confronto com a realidade social repleta de releituras e reinterpretações das certezas produzidas pelo conhecimento objetivo.
Na política brasileira, há uma antológica frase, cuja autoria é atribuída a várias raposas mineiras (Antônio Carlos de Andrade, José Maria Alkmin, Gustavo Capanema, Tancredo Neves) que diz: “em política, o que importa é a versão, não o fato”.
Embora não seja exatamente uma nova descoberta o conceito de pós-verdade foi revigorado a partir da explosão de informações geradas ou reproduzidas na web. O fenômeno produz sinais de alerta inquietantes. Nas mídias sociais, a ausência de uma instância para estabelece filtros, separar o joio do trigo e colocar em perspectiva visões distintas, cria um quadro propício para não acreditar em nada do que o outro diz, e se agarrar em sua própria convicção.
As novas tecnologias conectam núcleos familiares, amigos, grupos de discussões. Neste território – em que Facebook e Whatsapp são os principais vetores – descobrimos crenças, pensamentos e valores que referenciam pessoas e comunidades, sejam próximas ou distantes, inclusive parentes longínquos. Estabelecemos cumplicidade e memes esbanjam humor e irreverência. Mas surpresas e decepções se materializam também neste espaço. Discussões acirradas e ácidas são corriqueiras. Laços são desfeitos. Só mesmo os espíritos pacientes e imbuídos de avançado grau de tolerância conseguem se deliciar. O irreversível contextoda pós-verdade atropelaum espaço que poderia favorecer aconvivência e o diálogo.
Na era da pós-verdade, pródiga de acontecimentos marcantes como a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e a disputada campanha eleitoral norte-americana, fica claro que guerrilheiros da “verdade” e guerrilheiros da “mentira” – ambos alternando posições – prosperam em contextos altamente inflamáveis e radicalizados. A disputa entre aqueles que gritaram “é golpe” e aqueles que gritaram “é constitucional”, no Brasil, durante a queda de Dilma Rousseff, cristalizam a ideia de um mundo movido a paixões e crenças. Onde a verdade não é mais necessária.
O fenômeno remete à pergunta de como o jornalismo, ou a imprensa, convive com novos tempos, extremamente polarizados, além de caracterizados por audiências fragmentadas e dispersas.
O cenário brasileiro pré-impeachment da presidente Dilma Rousseff e a trajetória de Trump rumo ao cargo de presidente dos Estados Unidos – revela realidades distintas nas quais o novelo controvertido da pós-verdade envolveu fontes oficiais e a imprensa.
No Brasil, durante o processo de impeachment (fenômeno claramente recheado de verdades alternativas), as promessas de um futuro radiante, sobretudo na economia, alardeados pelos anti-dilmistas, foram endossadas com baixo grau de questionamento por significativa parte da mídia brasileira. A então presidente pouco investiu nesta disputa de narrativas e suas reações mais contundentes no campo da comunicação ocorreram somente no mês de março de 2016, três meses após o acolhimento do pedido de impeachment na Câmara dos Deputados.
Se a então presidente brasileira jamais colocou o dedo em riste em direção à imprensa, postura oposta tem sido adotada pelo atual presidente norte-americano. Fenômeno que se repete hoje, aqui, com o novo inquilino do Palácio da Alvorada.
Nos EUA, para sustentar sua narrativa, o candidato e hoje titular da Casa Branca disparou duras críticas sobre o comportamento da imprensa. Trump, conhecido por disseminar crenças e abordagens extremistas, utiliza amplamente as redes sociais, um ambiente onde a checagem tem critérios frouxos. E é exatamente nas redes sociais que o presidente e seu núcleo duro ecoam, aos quatro cantos, o que ele próprio dissemina como sua “verdade”: “a imprensa é mentirosa”. As tensões chegaram ao ponto de o próprio Trump declarar os jornalistas como as espécies mais desonestas do planeta.
Em ambos os casos, a disputa crucial é quem tem poder para é estabelecer a “verdade” numa era de (pós) verdade. É uma realidade na qual os emissores de notícias – na concepção de apurar, checar, ouvir diferentes vozes – não são mais facilmente identificáveis.
Os novos capítulos na equação comunicativa Estado, Imprensa e Cidadãos talvez sejam caracterizados pela apropriação do burburinho digital das redes sociais e de escancaradas lutas em torno da “verdade” (brigas com a imprensa).
Para o jornalismo a pós-verdade significa ameaça e oportunidade.
Em um primeiro momento, o jornalismo sai enfraquecido neste cenário no qual “todo mundo” é produtor de conteúdo e cujo imperativo é compartilhar nas redes sociais imediatamente. Ler a íntegra de um post raramente é a prática. Verificar a credibilidade da fonte, questionar o teor ou levantar dúvidas, são comportamentos ignorados. O importante é dar um clique e transmitir manchetes que, via de regra, apontam culpados, criam bodes expiatórios e oferecem soluções rasas para temas complexos.
Mas em um segundo momento, com tantas informações desencontradas, espera-se o triunfo da apuração rigorosa sobre as inconsistências do relato. O exercício trivial de checar a veracidade da informação – na concepção do jornalismo como um bem social e serviço ao público – poderá restaurar o papel do jornalismo como fonte confiável de informação, mesmo que num modelo adaptado aos novos tempos, em que a multiplicação e emissão dos fatos estejam sob a égide das novas redes. O desafio determinante é a capacidade do jornalismo de enfraquecer os construtores interessados em meia-verdades, ou falsidades inteiras.
Para o jornalismo retomar seu referencial de verdade circunstancial é necessário investimento, inovação, equipes estruturadas. O quadro atual é de uma indústria em crise financeira e de identidade, cuja redução de custos se faz à custa de demissões que fragilizam as esperanças do surgimento de combatentes da pós-verdade. Ao contrário, o que assistimos hoje, inclusive no noticiário televisivo, é um jornalismo debilitado que acaba por jogar mais gasolina no território incendiado das paixões e crenças.
Seja como for, o momento de separar o joio do trigo abre a oportunidade de desmontar ardis de spin doctores, ou de interesses políticos e ideológicos, dispersos no anonimato das redes. Existem atores ávidos para estimular crenças radicais, cultivar preconceitos e posições extremas que são abraçadas com fervor, principalmente nas redes onde os haters, trollers, portais fakes ou páginas especializadas em boatosseproliferam. Sem falar que muitos ainda gozam do anonimato nas profundezas e subterrâneos da web.
Nas conjunturas polarizadas, quando a maioria da sociedade fica à mercê de agentes cuja habilidade é criar cortinas de fumaça e manipular informações, vale pensar em mecanismos de proteção social. É necessário avançar em regulações que possam punir os inventores de mentiras e meias-verdades.
Saudável, portanto, a iniciativa do Conselho de Comunicação Social, registrada no portal de notícias do Senado Federal (07/10/2019), de recomendar que “o Parlamento e a sociedade devem discutir a responsabilização judicial de plataformas digitais como Facebook e Whatsapp, entre outras. Segundo os conselheiros, as empresas recebem enormes receitas publicitárias, mas não são submetidas às mesmas obrigações das mídias tradicionais, responsáveis pelo conteúdo que ofertam”.
Apresentar convicções com base em desinformações pode ser compreensível, mas oferece riscos. Quando ninguém acredita mais que exista uma verdade, ou algo aproximado, quando o que vale é simplesmente acreditar na sua própria razão, parece que a verdade está sendo abolida ou expulsa da convivência social.
As consequências sociais deste contexto são inquietantes. Na política, o enfraquecimento da noção e do valor da verdade é um perigo para a sociedade. O roteiro previsível aponta o acirramento da intolerância e o estímulo ao totalitarismo.
A pós-verdade pode custar caro.
* Armando Medeiros de Faria, vice-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Pública, mestrado em Ciências da Comunicação pela USP-Escola de Comunicações e Artes, e especialista em ciências políticas pela UFMG-Fafich.
Obs. artigo publicado originalmente na revista “Uno” (2017, número 27) editada pela divisão de Desenvolvendo Ideias da LLorente & Cuenca.
Bibliografia:
ALMEIDA, Rodrigo de. À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff. São Paulo: Leya, 2016
GIANNETTI, Eduardo. O Mercado das Crenças. São Paulo, Cia. das Letras, 2003.
MARCONDES. Ciro. Sociedade Tecnológica. São Paulo, Scipione. 1994.